segunda-feira, 21 de abril de 2008

Alberto Caeiro*

Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma?
E sobre a criação do mundo?
Não sei.
Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar.
É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas?
Sei lá o que é mistério!
Quem está ao sol e fecha os olhos;
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa
Metafísica? Que metafísica tem aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber o que não sabem?
“constituição íntima das cousas”...
“sentido íntimo do Universo”...
Tudo isto é falso,
Tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando,
E pelos lados das árvores um vago ouro lustroso
Vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta a dentro
Dizendo-me,
Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina).
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?)
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo
E ando com ele a toda hora

*heterônimo de Fernando Pessoa

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Redes de Sertão

Mário Henrique Castro Benevides*

Resenha de Livro: BOLLE, Willi. Grandesertão.br: O romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2004, 480 páginas.

A primeira coisa que precisa ser dita sobre este trabalho de Willi Bolle, é que ele se constitui como uma pesquisa e uma apresentação de enorme fôlego. Escrito décadas após o início de suas investigações, muito tempo depois da primeira publicação do autor sobre o mesmo assunto, grandesertão.br parece ser tanto um conjunto acumulado de seus esforços como uma nova etapa de seu longo percurso na leitura analítica da obra de João Guimarães Rosa.

O livro, dividido em Sete Capítulos, defende a tese de que Grande Sertão: veredas, ficção publicada em 1956, é um “romance de formação”: uma leitura crítica e uma interpretação aguçada da realidade brasileira feita por Rosa, encaixando-se assim, na classe de um texto também social e político. Vinculadas a esta base estão duas hipóteses que o autor logo cuida de apresentar: primeiro, o romance de Guimarães Rosa apontaria como o problema histórico capital no Brasil, a falta de diálogo entre as classes sociais. Tal teorização roseana estaria sutilmente guardada dentro da narrativa, na esfera da forma. Segundo, Grande sertão: veredas seria, nesse contexto de texto interpretativo, uma reescrita do clássico de Euclides da Cunha: Os sertões, de 1902. Uma reescrita no sentido de uma visão nova acerca de uma realidade confrontada; uma observação pautada na discordância, não apenas estética entre esse e aquele escritor, mas, igualmente, uma discordância sócio-política entre suas leituras do Brasil.

O formato geral do texto de Bolle reforça a idéia de que se trata uma união de antigos trabalhos a novas investidas, por repetir, em diversos pontos, essas hipóteses iniciais. Com isso os capítulos ganham relativa autonomia, servindo quase como ensaios separados sobre aspectos diferenciados do discurso no Grande sertão. Lendo o todo, no entanto, percebe-se a importância do conjunto e as tentativas de uma síntese profunda do discurso de Rosa – uma tentativa multifocal de apreender todas as “redes”, como Bolle define, do labirinto que é o romance. No mais, o livro torna-se, em alguns momentos, difícil por lidar com muitas realidades diferenciadas (estéticas, políticas, discursivas, históricas) e por ter como objeto o espaço difuso existente entre ficção e história. Mas a separação temática/ensaística dos capítulos, bem como a escrita fácil e empolgante de Bolle, favorecem a compreensão do ensaio completo, recuperando sempre o foco reflexivo do texto.

Após o primeiro Capítulo, que serve como uma introdução importante ao corpo da pesquisa apresentada, uma segunda separação, fundada em suas hipóteses-mestras, é indicada pelo próprio Bolle na estrutura do livro: a primeira parte, composta pelos Capítulos II a V discute o texto de Guimarães em contraste com o trabalho de Euclides, lidando com temas como: o sertão como realidade e pensamento, o jagunço e suas redes de relações, o pacto com o Diabo como símbolo de uma “lei fundadora” e a imagem da personagem Diadorim e os símbolos que a envolvem, respectivamente. A segunda etapa é uma tentativa de sintetização da idéia de que o livro de Rosa trabalha com a falta de diálogo entre as classes sociais, o que Willi Bolle irá definir da seguinte maneira: “[o] retrato do Brasil neste romance é centrado no problema da nação dilacerada (pág 263, grifo meu).

Essa segunda parte (Capítulos VI e VII) apresenta as visões diversas que a tradição dos ensaios construiu para o Brasil: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Antônio Candido – todos têm seus textos e teorias visitados pelo autor de grandesertão.br. Bolle os visita enquanto traça o mapa dos mapas interpretativos e suas nuances; uma leitura de superfície, resumida, que tem como interesse a aplicação de um estudo comparativo que coloque esses ensaios frente ao entendimento de Guimarães Rosa. Nesta parte, em especial, podemos ver o cuidadoso esforço de Bolle em costurar uma reflexão que tenha bases sólidas na Teoria Política e na história do Pensamento Social Brasileiro, aproximando leitura ficcional de observação científica, procurando no universo da forma e da estrutura textual, as sutilezas do autor de Grande Sertão: veredas e culminando na observação de sua linguagem inventada (a de Rosa) como centro de uma critica ampla da realidade do país e de, como lembra Candido, um processo de pesquisa ele próprio: o romance.

Bolle analisa discursos, situa-os em contextos históricos e estéticos, liga-os a possíveis origens e a possíveis funções. Nesse ínterim, as dificuldades estão armadas em dois pontos fundamentais. a já mencionada amplitude dos temas correlatos com a conseqüente extensão por vezes repetitiva das idéias; e uma aparente constância de pressupostos que se querem provados. O segundo caso é mais compreensível: o trabalho, já em andamento há anos, já em processo de inquestionável maturidade, acaba por confundir começo e resultado em sua apresentação. O formato de múltiplos ensaios que se completam pode ter aqui o seu maior impacto negativo: ele reitera a impressão de que o autor já sabe do que fala e retira a doce ilusão, comum em textos de análise, de que o leitor chega junto com o autor às conclusões finais. Esse pequeno pecado é mais estilístico que epistemológico embora arrisque muitas más interpretações.

No que diz respeito ao jogo complexo das análises interdisciplinares, o eixo largo de temáticas que a pesquisa de Bolle institui não fere, em primeira instância, nenhum princípio de concisão. É óbvio que, por lidar com tantas idéias e com tantos precursores diferentes, Bolle precisa fundar um espaço e uma rota de explicação que não permita reducionismos. E o faz com habilidade. Mas, mais uma vez, ao estruturar o corpo da exposição, ao escolher a ordem interna de cada capítulo – principalmente os da primeira parte – o autor retoma hipóteses e insere novas questões, imprimindo uma mecânica de digressões que confundirá o leitor menos atento. As repetições, didáticas na maioria das passagens, aparecem, ironicamente, nesses trechos de novas composições como peças desnecessárias do discurso, sem no entanto, se tornarem problemas outros que não o da ampliação demasiada do texto – o que pode causar dificuldade de compreensão do todo, mais uma vez, por parte de qualquer leitor “desligado”.

Essas pequenas complicações, de ordem estrutural e textual, não desmerecem de modo algum a tese e a capacidade de sua apresentação por Bolle. Uma vez dentro do texto, armado do tempo e da disposição que ele merece, elas são facilmente ignoradas. O texto é apoiado por recursos como mapas e esquemas cronológicos sobre o romance e facilita bastante o entendimento para quem teve uma experiência mais difícil com o livro de Rosa.

O livro é denso, complexo. É separado em uma ordem que passa a fazer sentido ao longo de sua leitura. Exige concentração, um conhecimento mínimo dos “ensaios de formação” do pensamento social brasileiro, bem como, obviamente, uma leitura de Grande sertão: veredas e de Os sertões. Tem uma linguagem rápida embora longa, e passa com velocidade por uma revisão de literatura necessária. Põe o leitor em movimento e o coloca, sem muitos badulaques, no sertão e na linguagem literária. Um trabalho que assume as dificuldades, que não são poucas, e atinge, enfim, seu objetivo: uma leitura de Grande sertão como um romance de formação. A viagem recomeça e torna-se possível e prazeroso alcançar o conjunto de boas idéias que a proposta suscita. E isso para sociólogos, antropólogos, historiadores, letrados, curiosos e admiradores de João Guimarães Rosa e de sua forma sabidamente original de enxergar o mundo.

* Sociólogo, mestrando em Sociologia da Universidade Federal do Ceará.