sábado, 27 de dezembro de 2008

Per Música

No meio do estrépito
E estrondos que atroam
De ardores em fúrias
Contendem, reboam,
Eu penso nas cousas suaves e tênues
Nas cousas que fogem, que nadam, que voam
Enquanto sem ânimo
Os corpos estuam,
E as almas em ânsias
Em vão se extenuam,
Eu penso nas cousas que amamos em êxtase
Em cousas que passam, deslizam, flutuam
E quando, entre mágoas,
Despeitos e dores
Refervem os ódios
E frios rancores
Eu penso nas cousas de um mundo quimérico
Um mundo de afagos, carícias, amores.

Bruno Jaci

(O Pão, n°7, p.2-3, 1 jan. 1895)*

*Conferir em FIUZA, Regina Cláudia Pamplona. O Pão… da Padaria Espiritual. Fortaleza, 1992, p.35-36.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Entrevista – FRÉDÉRIC ROSSIF*

- Você viajou pelo mundo, percorreu as regiões mais diversas, conheceu gente de todas as partes. Arriscaria uma definição global, geral, da aventura humana?

Frédéric Rossif (FR): Diria talvez que o homem, em qualquer lugar, é um nômade do amor… Nessa breve luta que é nossa passagem sobre a terra, diante da imensidão do tempo, nós buscamos. Fazemos o percurso de um combatente em busca de quê? De alguns oásis – não para descansar, mas para tentarmos ser felizes. A característica do deserto é oferecer-nos miragens, sem nos devolver qualquer eco. Perseguimos então a miragem sempre mais distante, cada vez mais distante, sem jamais obtermos qualquer resposta. No final de tudo, alcançamos a miragem que, para alguns, é o paraíso; para outros, a paz eterna; para outros ainda, a morte biológica. A travessia da vida oferece alguns momentos de amor, que são, entretanto, oásis de felicidade, num deserto sempre indiferente. O importante é indagar, não é obter respostas.

- Você da fala da vida, do amor, da morte, como alguém que já esteve face a face com a morte…

FR: Foi no Irã, durante a filmagem de Óperas Selvagens. Estávamos seguindo uns lobos. Há magníficos lobos nas montanhas das fronteiras entre Irã e Iraque. Havíamos localizado um lobo com sua fêmea e seus filhotes, e as seguíamos de helicóptero. O lobo andou mais devagar, para incitar-nos a segui-lo e permitir que a fêmea e suas crias se salvassem. Eu disse: “Façamos o jogo dele, vamos ajudá-lo”. Passamos a segui-lo, deixando que a loba e os filhotes escapassem. É uma característica do lobo: sacrificar-se para salvar os outros. É um animal tímido e corajoso. Em certo momento, nosso lobo fez um brusco desvio. Para segui-lo, o helicóptero fez meia-volta e bateu na montanha. O motor rateou. Durante alguns segundos – três ou quatro, no máximo – tivemos um grande medo. O medo deve liberar no cérebro alguns elementos químicos que, ao se misturarem, estabelecem um estranho contato… Durante esses três segundos, vi a minha vida inteira desenrolar-se diante de mim, com incrível vagar e precisão. É uma outra percepção do tempo.

- A morte, assim como as borboletas multicoloridas, é o tema de um de seus filmes mais conhecidos, Morrer em Madrid.

FR: Morrer em Madrid já tem muito tempo. Esse filme foi bastante atacado quando estreou. Pela extrema-direita, naturalmente, mas também pela extrema-esquerda. Por todos aqueles que só vêem o claro e o escuro na vida. E que ignoram que, no pior dos canalhas, pode haver um esplendor de poesia que precisamos saber captar no momento exato. A verdade da vida, felizmente, é multicolorida. A sutileza e os contrastes das situações históricas são tamanhos que a história jamais se assemelha a uma ideologia.

- Não existem apenas o claro e o escuro, mas, mesmo assim, em alguns de seus filmes, há muito de escuro.

FR: É preciso tentar explicar o escuro mais escuro. Por exemplo, ao apresentar a ascensão do nazismo, expor a assustadora inflação: um pedaço de pão que valia bilhões de marcos. A humilhação também. Dizia Dostoiévski: “Quem sofre terrivelmente faz coisas terríveis”. Quando não consideramos a humilhação acumulada, é impossível compreendermos a aparição do nazismo há 50 anos – ou, atualmente, o problema do terrorismo. A humilhação é uma das coisas que fazem com que não se preste mais atenção à vida. Não apenas aceita-se arriscá-la, mas também não se lhe dá atenção. A humilhação é a impalpável estrutura que, há séculos, impede que os povos do Oriente e do Ocidente se encontrem.

- Dir-se-ia que, para você, comunicação é sinônimo de poesia…

FR: A comunicação do sonho, da imanência, é para nós cada vez mais necessária, cada vez mais indispensável. Mas deve-se logo acrescentar: ela só pode desenvolver-se num regime democrático. A democracia, como dizia Churchill, é o pior dos regimes, com exceção de todos os outros. A comunicação na democracia é a pior das comunicações, mas não há outra forma de se comunicar verdadeiramente. Simplesmente porque é necessária a dialética do sim e do não, da provocação e da resposta, que confere ao nosso discurso a justa medida, a parte do sol e da sombra.

- Que tem a dizer a quem o considera demasiadamente perdido nas nuvens da poesia, sem os pés na terra, enquanto o mundo está repleto de sofrimentos, dramas e convulsões?

FR: Não há ninguém mais realista que os poetas. Em 1936, Paul Eluard escreveu: “A Terra é azul como uma laranja”. Todos riram. Quando o primeiro engenho espacial americano, o Pioneer, fotografou a Terra, “viu-se”, que a terra parecia uma laranja azul. Eluard antecipara-se ao Pioneer! Somente os poetas são realistas. Eles vão ao essencial.
Isso me faz pensar numa entrevista que realizei com Mão Tse Tung. A última pergunta que lhe fiz era a seguinte: “Senhor Presidente, acredita que o comunismo tenha um futuro político na China?”. Ele me deu uma resposta negativa. Isso aconteceu no salão do Palácio dos Imperadores, na Cidade Proibida, repleto de imensas poltronas cobertas com capas brancas. Atrás de Mao estavam Lin Biao e Zhou Enlai. À resposta do Presidente, Lin Biao teve um sobressalto, Zhou Enlai manteve-se impassível – o que já demonstrava a diferença entre os dois.
Mao prosseguiu: “Sabe o que são, para nós, 250 ou 300 anos? Apenas um terço da era dos Tang… Os Tang reinaram neste país durante 1000 anos”. Essa resposta de Mao era sutil e bela. Creio que ele quis dizer-me: para você, ocidental, que é o futuro político? A próxima eleição? Para nós o futuro político são três séculos…
E pensei: que extraordinária contribuição à história e à cultura do mundo, ao conhecimento profundo dos homens e das coisas, a China liberada poderá oferecer, simultaneamente inspirada nos preceitos de Confúcio, do Tao, dos antigos poetas chineses, de Sun Yat Set e de Mao Tse Tung… Esse magnífico facho da história universal, há 5000 anos tão isolado do resto da humanidade, refulgirá então para nós, ofertando-nos sua memória como um inestimável tesouro perdido e finalmente reencontrado…

* “Entrevista – Frèdèric Rossif” In: CÓCCO, Maria Fernandes. ALP, 8 - análise, linguagem e pensamento: a diversidade de textos numa perspectiva socioconstrutivista. São Paulo: FTD, 1995.

domingo, 10 de agosto de 2008

CARTA AOS "PUROS"

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue incolor, da cor alvar dos lírios
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios
E desejais ser fuzilados sem o lenço.

Ó vós, homens iluminados a néon
Seres extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem amais e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à idéia do que é bom.

Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros
E vos julgais os portadores da verdade
Quando nada mais sois, à luz da realidade,
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte
E vos enclausurais no instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz o antônimo da treva
E acreditais que o amor é o túmulo do forte.

Ó vós que pedis pouco a vida que dá muito
E eriges a esperança em bandeira aguerrida
Sem saber que esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é um dom público e gratuito.

Ó vós que vos negais a escuridão dos bares
Onde o homem que ama oculta o seu segredo
Vós que viveis a mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos
Que tudo equacionais em termos de conflito
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer se não houver vencidos.

Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos.

Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres
Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres.

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta
Em nome da vossa vã sabedoria
Vós que tudo comeis mas viveis de dieta
E achais que o bem do alheio é a melhor iguaria.

Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tendes cuidado porque a Esfinge vos decifra…
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.

Vinicius de Moraes,
Cf. em Para viver um grande amor: crônicas e poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. pp.59-60

segunda-feira, 16 de junho de 2008

O homem; as viagens

O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.

Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte – ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro – diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto – é isto?
idem
idem
idem.

O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato o é o Sol, falso touro espanhol domado.
Restam outros sistemas fora
do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
só o resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
por o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeita alegria
de con-viver

Carlos Drummond de Andrade*

*Cf. em:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Seleta em prosa e verso.
RJ, J. Olympio – Brasília, INL-MEC, 1971.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

GALATÉIAS DE PIGMALIÕES INSEGUROS

Conversávamos noutro dia desses sobre a declaração de uma amiga, eu e outro amigo que também a conhecia bem. Ela manifestava num momento de desabafo seu desejo e atração física por alguém, afirmando querer transar com o cara sem nenhum tipo de envolvimento afetivo pelo mesmo, apenas uma noite de puro sexo. Meu amigo de pronto ficou em choque e numa argumentação no mínimo suspeita discursava sua visão sobre aquilo que acreditava ser a verdadeira essência feminina:

- Este tipo de coisa não é o papel da mulher, pois assim estaria se igualando ao homem. Mulher é o típico sexo frágil, portanto, mais sensível, carinhosa, meiga. Nenhum comportamento semelhante pode ser bem visto por nós homens. Pois este tipo de coisa descaracteriza e contradiz a essência da mulher. Sexo sem afeto é coisa de homem.

Assim, no calor do diálogo percebi que o seu discurso era comum em nossa sociedade. Ele me fez lembrar da lenda romana contada por Ovídio em sua peça “Metamorfose”.

Reza a lenda que um brilhante escultor solitário da Ilha de Chipre, Pigmalião, era assediado pelas mais belas mulheres do lugarejo em que vivia. Certa ocasião, Pigmalião recebe a visita da deusa Afrodite em sonho. Provocada pelos pedidos das mulheres do lugar, Afrodite aparece ao artísta para tentar fazer com que se casasse com alguma delas. Ao acordar inspirado pela beleza da deusa, Pigmalião faz (Galatéia), a mais bela estátua esculpida. Sua obra de arte agora torna-se o objeto de sua paixão. Quando Afrodite retorna para cobrar alguma decisão por parte do artista, ele pede a deusa que faça com que a escultura seja sua esposa. O pedido é atendido, e Pigmalião beija a estátua que prontamente se transforma numa linda mulher de carne e osso. E ambos se amaram para o resto das suas vidas.

O que há de comum entre a lenda de Pigmalião e a convicção do meu amigo sobre a natureza da mulher?

A resposta está no fato de que nós homens sofremos do mal de Pigmalião, inventamos nossas próprias mulheres. Elas são frutos dos nossos devaneios e sonhos machistas. Assim acontece também nos rincões da religião, nosso ocidente machista perpetua a invenção da mulher pelo mito bíblico do gênesis. Esta então seria tirada solidariamente da costela de um solteirão para em seguida enganá-lo e assim parir o pecado.

Ora, sabemos por Flávio Josefo que na sociedade judaica ainda do I sec. d.C. a mulher era por lei considerada inferior ao homem em todas as coisas, pois fora a ele que “Deus” teria entregado o poder. Nos textos religiosos a mulher estava na mesma categoria das crianças, dos surdos, dos cegos, dos deficientes mentais, e dos escravos pagãos. Até filosofia clássica revelou-se misógena, quando pela boca de Aristóteles proclama a mulher como um “Macho deformado” e portanto inferior intelectualmente ao homem.

No “Banquete” de Platão, diálogo que trata do amor, o mais belo discurso é feito por Diotimia que, sendo mulher, reproduzia na íntegra a mensagem divina acerca do amor. Do mesmo modo “as Pitonisas” incapazes de pensar por si mesmas, constituem o canal seguro do escoamento do pensar dos deuses. O fato é que, a misogenia grega e o preconceito judaico prefaciaram as relações de poder no seio da Igreja. Assim, Tertuliano, já nos primeiros séculos do cristianismo acusava as mulheres: “A sentença de Deus é sobre vosso sexo; e seu castigo pesa ainda mais sobre vós. Vós sois a porta do demônio”.

Também sob a pena da fogueira na Idade Média durante quatro séculos, inquisidores com a ameaça de caça às bruxas ensinavam às mulheres como deveriam se comportar: dóceis, recatadas, limitadas ao afazeres domésticos. Somente ao homem era permitida ambição profissional. O medo de ser queimada viva se fez tanto no inconsciente coletivo que a mulher foi inventada e criada num cuidado extremo. Educadas por nossos pais e avós afim de serem aceitas pela sociedade sob as bandeiras do recato.

Obviamente como homem sou também responsável pela invenção de certo padrão de mulher. Confesso, a ideia de uma Dulcinéia de Taboso povoa e muito meu imaginário Quixotesco. No entanto, vemos através de Nietzsche a Habermas que os valores passados por nossa tradição não são eternos. E que portanto, não foi Deus, Alá, Jesus, ou Buda que fez os céus se abrirem descortinando padrões sociais que hoje moldam nosso comportamento. Eles diziam que nosso conhecimento da realidade é condicionado pelo “interesse”, ou seja, a estruturação dos valores a serem vividos pela sociedade está intrisecamente ligada aos anseios do grupo dominante.

Então é importante sabermos que é a sociedade “machista” que limita os espaços da mulher, e por conseqüência não permite a emergência da figura feminina no pensar e no protagonismo de sua ação na construção do mundo.

Mas, se esta sociedade patriarcal arbitrariamente atribui valores e aptidões a ambos os sexos, cabe aqui a relevância da preocupação do meu amigo, e a sua infeliz e desesperada tentativa de classificar a mulher; O que faz da mulher mulher? Qual a competência de sua feminilidade?

Por séculos escritores seguiram inventando as mulheres. No papel, as letras redesenhavam o imaginário que povoaria as mentes de todos nós, leitores e leitoras. As mulheres foram o que eles diziam que eram. As mais variadas nuances da literatura não me deixa mentir:

José de alencar por exemplo, moldou a mulher com diversos rostos, mostrando sempre a represália que sofriam a desobedecerem os padrões estabelecidos; É o caso da personagem Lúcia em Lucíola ou Iracema. Em Machado de Assis surgiu a mulher dissimulada, sedutora, sonsa... Desde Helena e seus segredos, passando por D. Severina e seus braços até a polêmica Capitú. Rubem Braga menos doutrinário constrói a imagem de seus próprios sonhos de Prazer, bela imagem; Quando, na crônica “Não mais aflitos” fala do prazer de contemplar uma mulher sem estar apaixonado.

Também “As Brumas de Avalon”, livro que virou filme, vemos o imperialismo da cultura cristã católica medieval extinguindo a religião dos (druídas), substituindo a entidade sagrada e fértil da deusa pela figura da casta Virgem Maria. A religião dos druídas foi satanizada porque no fundo enfocava aspectos de uma espiritualidade marcadamente feminista (aqui não se deve tomar a palavra pelo termo moderno). Não existia um Deus, mas a deusa (natureza), não existia sacerdotes, mas sacerdotisas. Quem orientava a mística daquela sociedade eram as mulheres, temidas, e portanto, respeitadas não pelo poder que tinham, mas pelo que representavam: O talento criativo e a fertilidade como algo intrínseco à natureza feminina.

As sacerdotisas de Avalon expunham o que todas as mulheres manifestam, a criação ligada à vivência de uma “alma selvagem” que assusta os homens e aos padrões de comportamento impostos. Esse talento feminino é limitado pelo freio social, e quase sempre, estabelecidos por homens inseguros diante de um potencial criador inato ou talento artístico capaz de brilhar. Nas palavras de Simone de Beauvoir vemos a mulher assumir o modelo feminino imposto pela sociedade: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” “Eu sou aquilo que consegui fazer a partir do que me fizeram”.

Percebemos, nossa visão da realidade feminina foi de tal maneira distorcida que é impossível transcender a meras posições culturais e preconceituosas impressas ao longo da história. Tendo em vista que tudo quanto conhecemos sobre o ser mulher foram aspectos desenvolvidos em detrimento do domínio histórico-social sofrido a milênios. Pois na medida que é inferiorizada, ela passa a crer na própria inferioridade e a perpetuá-la à filhos e filhas enquanto mãe-educadora.

Por isso, acredito que até para a própria mulher foi negado o direito de conhecer-se completamente, já que a mesma sempre foi vista à sombra masculina. Portanto, nós, homens e mulheres devemos admitir nossa total ignorância em relação à competência da alma feminina. Talvez seja por isso que a praticidade masculina aliada à sua ignorância faça com que inventemos nossas mulheres, seja por letras poéticas e misógenas, seja por atitudes e argumentos preconceituosos insuflados por medo de que sua criatividade revele a inferioridade masculina.

Nossa esperança é transcendamos à meros estereótipos míticos, e que no futuro homem e mulher sejam uma só voz a decidir os destinos do Universo. Pois na visão belíssima de Theilhard Chardin, a história evolui no sentido de uma cristificação universal, onde a plenitude do amor esgota as diferenças.

Sem estátuas e sem costelas!

Wellington Araújo
Estudante de Teologia

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Alberto Caeiro*

Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma?
E sobre a criação do mundo?
Não sei.
Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar.
É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas?
Sei lá o que é mistério!
Quem está ao sol e fecha os olhos;
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa
Metafísica? Que metafísica tem aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber o que não sabem?
“constituição íntima das cousas”...
“sentido íntimo do Universo”...
Tudo isto é falso,
Tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando,
E pelos lados das árvores um vago ouro lustroso
Vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta a dentro
Dizendo-me,
Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina).
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?)
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo
E ando com ele a toda hora

*heterônimo de Fernando Pessoa

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Redes de Sertão

Mário Henrique Castro Benevides*

Resenha de Livro: BOLLE, Willi. Grandesertão.br: O romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2004, 480 páginas.

A primeira coisa que precisa ser dita sobre este trabalho de Willi Bolle, é que ele se constitui como uma pesquisa e uma apresentação de enorme fôlego. Escrito décadas após o início de suas investigações, muito tempo depois da primeira publicação do autor sobre o mesmo assunto, grandesertão.br parece ser tanto um conjunto acumulado de seus esforços como uma nova etapa de seu longo percurso na leitura analítica da obra de João Guimarães Rosa.

O livro, dividido em Sete Capítulos, defende a tese de que Grande Sertão: veredas, ficção publicada em 1956, é um “romance de formação”: uma leitura crítica e uma interpretação aguçada da realidade brasileira feita por Rosa, encaixando-se assim, na classe de um texto também social e político. Vinculadas a esta base estão duas hipóteses que o autor logo cuida de apresentar: primeiro, o romance de Guimarães Rosa apontaria como o problema histórico capital no Brasil, a falta de diálogo entre as classes sociais. Tal teorização roseana estaria sutilmente guardada dentro da narrativa, na esfera da forma. Segundo, Grande sertão: veredas seria, nesse contexto de texto interpretativo, uma reescrita do clássico de Euclides da Cunha: Os sertões, de 1902. Uma reescrita no sentido de uma visão nova acerca de uma realidade confrontada; uma observação pautada na discordância, não apenas estética entre esse e aquele escritor, mas, igualmente, uma discordância sócio-política entre suas leituras do Brasil.

O formato geral do texto de Bolle reforça a idéia de que se trata uma união de antigos trabalhos a novas investidas, por repetir, em diversos pontos, essas hipóteses iniciais. Com isso os capítulos ganham relativa autonomia, servindo quase como ensaios separados sobre aspectos diferenciados do discurso no Grande sertão. Lendo o todo, no entanto, percebe-se a importância do conjunto e as tentativas de uma síntese profunda do discurso de Rosa – uma tentativa multifocal de apreender todas as “redes”, como Bolle define, do labirinto que é o romance. No mais, o livro torna-se, em alguns momentos, difícil por lidar com muitas realidades diferenciadas (estéticas, políticas, discursivas, históricas) e por ter como objeto o espaço difuso existente entre ficção e história. Mas a separação temática/ensaística dos capítulos, bem como a escrita fácil e empolgante de Bolle, favorecem a compreensão do ensaio completo, recuperando sempre o foco reflexivo do texto.

Após o primeiro Capítulo, que serve como uma introdução importante ao corpo da pesquisa apresentada, uma segunda separação, fundada em suas hipóteses-mestras, é indicada pelo próprio Bolle na estrutura do livro: a primeira parte, composta pelos Capítulos II a V discute o texto de Guimarães em contraste com o trabalho de Euclides, lidando com temas como: o sertão como realidade e pensamento, o jagunço e suas redes de relações, o pacto com o Diabo como símbolo de uma “lei fundadora” e a imagem da personagem Diadorim e os símbolos que a envolvem, respectivamente. A segunda etapa é uma tentativa de sintetização da idéia de que o livro de Rosa trabalha com a falta de diálogo entre as classes sociais, o que Willi Bolle irá definir da seguinte maneira: “[o] retrato do Brasil neste romance é centrado no problema da nação dilacerada (pág 263, grifo meu).

Essa segunda parte (Capítulos VI e VII) apresenta as visões diversas que a tradição dos ensaios construiu para o Brasil: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Antônio Candido – todos têm seus textos e teorias visitados pelo autor de grandesertão.br. Bolle os visita enquanto traça o mapa dos mapas interpretativos e suas nuances; uma leitura de superfície, resumida, que tem como interesse a aplicação de um estudo comparativo que coloque esses ensaios frente ao entendimento de Guimarães Rosa. Nesta parte, em especial, podemos ver o cuidadoso esforço de Bolle em costurar uma reflexão que tenha bases sólidas na Teoria Política e na história do Pensamento Social Brasileiro, aproximando leitura ficcional de observação científica, procurando no universo da forma e da estrutura textual, as sutilezas do autor de Grande Sertão: veredas e culminando na observação de sua linguagem inventada (a de Rosa) como centro de uma critica ampla da realidade do país e de, como lembra Candido, um processo de pesquisa ele próprio: o romance.

Bolle analisa discursos, situa-os em contextos históricos e estéticos, liga-os a possíveis origens e a possíveis funções. Nesse ínterim, as dificuldades estão armadas em dois pontos fundamentais. a já mencionada amplitude dos temas correlatos com a conseqüente extensão por vezes repetitiva das idéias; e uma aparente constância de pressupostos que se querem provados. O segundo caso é mais compreensível: o trabalho, já em andamento há anos, já em processo de inquestionável maturidade, acaba por confundir começo e resultado em sua apresentação. O formato de múltiplos ensaios que se completam pode ter aqui o seu maior impacto negativo: ele reitera a impressão de que o autor já sabe do que fala e retira a doce ilusão, comum em textos de análise, de que o leitor chega junto com o autor às conclusões finais. Esse pequeno pecado é mais estilístico que epistemológico embora arrisque muitas más interpretações.

No que diz respeito ao jogo complexo das análises interdisciplinares, o eixo largo de temáticas que a pesquisa de Bolle institui não fere, em primeira instância, nenhum princípio de concisão. É óbvio que, por lidar com tantas idéias e com tantos precursores diferentes, Bolle precisa fundar um espaço e uma rota de explicação que não permita reducionismos. E o faz com habilidade. Mas, mais uma vez, ao estruturar o corpo da exposição, ao escolher a ordem interna de cada capítulo – principalmente os da primeira parte – o autor retoma hipóteses e insere novas questões, imprimindo uma mecânica de digressões que confundirá o leitor menos atento. As repetições, didáticas na maioria das passagens, aparecem, ironicamente, nesses trechos de novas composições como peças desnecessárias do discurso, sem no entanto, se tornarem problemas outros que não o da ampliação demasiada do texto – o que pode causar dificuldade de compreensão do todo, mais uma vez, por parte de qualquer leitor “desligado”.

Essas pequenas complicações, de ordem estrutural e textual, não desmerecem de modo algum a tese e a capacidade de sua apresentação por Bolle. Uma vez dentro do texto, armado do tempo e da disposição que ele merece, elas são facilmente ignoradas. O texto é apoiado por recursos como mapas e esquemas cronológicos sobre o romance e facilita bastante o entendimento para quem teve uma experiência mais difícil com o livro de Rosa.

O livro é denso, complexo. É separado em uma ordem que passa a fazer sentido ao longo de sua leitura. Exige concentração, um conhecimento mínimo dos “ensaios de formação” do pensamento social brasileiro, bem como, obviamente, uma leitura de Grande sertão: veredas e de Os sertões. Tem uma linguagem rápida embora longa, e passa com velocidade por uma revisão de literatura necessária. Põe o leitor em movimento e o coloca, sem muitos badulaques, no sertão e na linguagem literária. Um trabalho que assume as dificuldades, que não são poucas, e atinge, enfim, seu objetivo: uma leitura de Grande sertão como um romance de formação. A viagem recomeça e torna-se possível e prazeroso alcançar o conjunto de boas idéias que a proposta suscita. E isso para sociólogos, antropólogos, historiadores, letrados, curiosos e admiradores de João Guimarães Rosa e de sua forma sabidamente original de enxergar o mundo.

* Sociólogo, mestrando em Sociologia da Universidade Federal do Ceará.

domingo, 16 de março de 2008

Prolegômenos sobre o “cuidado de si”, de Michel Foucault

Ubiracy de Souza Braga
23/12/2006 14:38



"Pelo que eu pude e pelo que eu não pude"

Para M.J. Cardoso


O filósofo Michel Foucault deixou inscrito uma das mais belas profecias sobre o “cuidado de si”. Uma ética política sobre a história da sexualidade, incluída a morte. A problemática da governamentalidade fora retomada no “resumo dos cursos do College de France” (1970-1984): “gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pronunciar hoje, e nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante dez anos”. Veio a falecer em 25 de junho de 1984, “quando seu estado de saúde não mais lhe permitia prepará-los”.

Salvo engano, nenhum sistema de pensamento em tão pouco tempo, obteve repercussão tão ampla e evidente, do ponto de vista da mudança de simbólica, a partir de temas como: a crítica da razão governamental, a analítica do poder, sobre as relações “espaço-tempo” e “poder-saber”, “estética da existência” e “experimento moral”, e mesmo entre o “império do olhar” e a “arte de ver”. É impossível esquecer a tese segundo a qual “a visibilidade é uma armadilha” numa sociedade que “canceriza” a vista a través do poder disciplinar.

O estudo dedicado ao “cuidado de si” teve como referência Alcibíades, retratado pelo pintor Pedro Américo em 1865. Nele, as questões dizem respeito ao “cuidado de si” com a política, com a pedagogia e com o conhecimento de si. Sócrates recomendava a Alcibíades que aproveitasse a sua juventude para ocupar-se de si mesmo, pois, “com 50 anos, seria tarde demais”. Mas isso, numa relação que diz respeito talvez ao “enamoramento”, na acepção de Francesco Alberone e que não pode “ocupar-se de si” sem a ajuda do outro.

Contudo, é no discurso dedicado à formação da “hermenêutica de si” (1981-1982) que Foucault pretendeu estudá-lo “não somente em suas formulações teóricas, mas de analisá-lo em relação ao conjunto de práticas que tiveram uma grande importância na Antigüidade clássica ou tardia”. Isto porque, para ele, esse princípio de “ocupar-se de si”, de “cuidar-se de si mesmo” estão associados.

O exercício da morte, tal como fora evocado por Sêneca, consiste em viver a longa duração da vida como se fosse tão curta quanto um dia e viver cada dia como se a vida inteira coubesse nele; todas as manhãs, deve-se estar na infância da vida, mas deve-se viver toda a duração do dia como se a noite fosse o momento da morte. Na hora de ir dormir, afirma na Carta 12, digamos com alegria, com um sorriso: “eu vivi”.

Isto quer dizer que através dos exercícios de abstinência e de domínio que constituem a askesis necessária, o lugar atribuído ao conhecimento de si torna-se mais importante: a tarefa de se pôr à prova, de se examinar, de controlar-se numa série de exercícios bem definidos, coloca a questão da verdade – da verdade do que se é, do que se faz e do que é capaz de fazer – no cerne da constituição do sujeito moral. E, finalmente, o ponto de chegada dessa elaboração é ainda e sempre definido pela soberania do indivíduo sobre si mesmo; mas essa soberania amplia-se numa experiência onde a relação consigo mesmo assume a forma, não somente de uma dominação “mas de um gozo sem desejo e sem perturbação”.

Nesse lento desenvolvimento da arte de viver sob o signo do “cuidado de si”, os dois primeiros séculos da época imperial podem ser considerados como o ápice de uma curva: uma espécie de idade de ouro na cultura de si, sendo subentendido, evidentemente, que esse fenômeno só concerne aos grupos sociais, bem limitados em número, que eram portadores de cultura e para os quais uma techne tou biou podia ter um sentido e uma realidade: ou seja, “aqueles que querem salvar-se devem viver cuidando-se sem cessar”. Ademais, é conhecida a amplitude tomada em Sêneca pelo tema da aplicação a si próprio: é para consagrar-se a esta que é preciso renunciar às outras ocupações: poder-se-ia desse modo tornar-se disponível para si próprio. Sêneca dispõe de todo um vocabulário para designar as diferentes formas que o cuidado de si deve tomar e a pressa com a qual se procura unir-se a si mesmo. Apressa-te pois para o objetivo: “dize adeus às esperanças vãs, acorre em tua própria ajuda se te lembras de ti mesmo, enquanto ainda é possível”.

Portanto, é possível dizer que não há idade para se ocupar consigo. Dizia Epicuro: “nunca é demasiado cedo nem demasiado tarde para ocupar-se com a própria alma. De sorte que devem filosofar o jovem e o velho, este para que, ao envelhecer, seja jovem em bens pela gratidão ao que foi, e o outro para que, jovem, seja ao mesmo tempo ancião pela ausência de temor pelo futuro”. Aprender a viver a vida inteira era um aforismo citado por Sêneca e que convida a transformar a existência numa espécie de exercício permanente; e mesmo que seja bom começar cedo, é importante jamais relaxar.

Mas há uma advertência: “é preciso tempo para isso”. E é um dos grandes problemas dessa cultura de si, fixar, no decorrer do dia ou da vida, a parte que convém consagrar-lhe. Recorre-se a muitas fórmulas diversas. Pode-se reservar, à noite ou de manhã, alguns momentos de recolhimento para o exame daquilo que se fez, para a memorização de certos princípios úteis, para o exame do dia transcorrido; o exame matinal e vesperal dos pitagóricos se encontra, sem dúvida com conteúdos diferentes, nos estóicos; Sêneca, Epicteto, Marco Aurélio, fazem referência a esses momentos que se deve consagrar a voltar-se para si mesmo.

Pode-se também interromper de tempos em tempos as próprias atividades ordinárias e fazer um desses retiros que Musonius, dentre outros, recomendava vivamente: eles permitem ficar face a face consigo mesmo, recolher o próprio passado, colocar diante de si o conjunto da vida transcorrida, familiarizar-se, através da leitura, com os preceitos e os exemplos nos quais se quer inspirar e encontrar, graças a uma vida examinada, os princípios essenciais de uma conduta racional. É possível ainda, no meio ou no fim da própria carreira, livrar-se de suas diversas atividades e, aproveitando esse declínio da idade onde os desejos ficam aparentemente apaziguados, consagrar-se inteiramente, como Sêneca, no trabalho filosófico ou, como Spurrima, na calma de uma existência agradável, “à posse de si próprio”.

Esse tempo não é vazio: ele é povoado por exercícios, por tarefas práticas, atividades diversas. Ocupar-se de si não é uma sinecura. Existem os cuidados com o corpo, os regimes de saúde, os exercícios físicos sem excesso, a satisfação, tão medida quanto possível, as necessidades. Existem as meditações, as leituras, as anotações que se toma sobre livros ou conversações ouvidas, e que mais tarde serão relidas, a rememoração das verdades que já se sabe mas de que convém apropriar-se ainda melhor. Marco Aurélio fornece, assim, um exemplo de “anacorese em si próprio”: trata-se de um longo trabalho de reativação dos princípios gerais e de argumentos racionais que persuadem a não deixar-se irritar com os outros nem com os acidentes, nem tampouco com as coisas.

Tem-se aí um dos pontos mais importantes dessa atividade consagrada a si mesmo. Ela não constitui um exercício da solidão; mas sim uma verdadeira prática social. E isso, em vários sentidos. Mas toda essa aplicação a si não possuía como único suporte social a existência das escolas, do ensino e dos profissionais da direção da alma; ela encontrava, facilmente, seu apoio em todo o feixe de relações habituais de parentesco, de amizade ou de obrigação. Quando, no exercício do cuidado de si, faz-se apelo a um outro, o qual advinha-se que possui aptidão para dirigir e para aconselhar, faz-se uso de um direito; e é um dever que se realiza quando se proporciona ajuda a um outro ou quando se recebe com gratidão as lições que ele pode dar. Acontece também do jogo entre os cuidados de si e a ajuda do outro inserir-se em relações preexistentes às quais ele dá uma nova coloração e um calor maior. O cuidado de si – ou os cuidados que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmos – aparece então como uma intensificação das relações sociais. Sêneca dedica um consolo à sua mãe, no momento em que ele próprio está no exílio, para ajudá-la a suportar essa infelicidade atual e, talvez, mais tarde, infortúnios maiores. O “cuidado de si” aparece, portanto, intrinsecamente ligado a uma espécie de “serviço da alma” que comporta a possibilidade de um jogo de trocas com o outro e de um sistema de obrigações recíprocas.



UBIRACY DE SOUZA BRAGA é sociólogo, cientista político, professor da coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (Uece)

segunda-feira, 3 de março de 2008

A Morte de João Ninguém

Eduardo Diatahy B. de Menezes:

A MORTE DE JOÃO NINGUÉM[1], AO VIVO, PELA TV,
NO PAÍS DO MÃO BRANCA[2]




Nota Preliminar – Penso que seria interessante e legítimo anteceder o presente texto com algumas reflexões preambulares acerca de sua natureza como gênero e discurso, em especial tendo-se em conta sua temática e seu estilo intermediário. Reflexões, portanto, que buscam examinar justamente o trabalho conceptual à volta do ensaio e da crônica.
No meu entendimento o presente texto situa-se a meio caminho entre a crônica e o ensaio. Essa tomada de posição exigiria algum esclarecimento, numa como prefação quase propedêutica, que dissesse das características dessas duas modalidades discursivas.
Examinemos a crônica em primeiro lugar. Na sua origem, o vocábulo remete ao termo que vem do Grego: krónos, tempo; e em Latim era dito annu(m), ano; ânua, anais. O termo crônica nomeia um tipo de narrativa cuja definição apresenta os seus problemas, desde logo por não se tratar de, estritamente falando, um gênero literário, no mesmo sentido em que consideramos como tal o romance, a tragédia ou a écloga. No âmbito da narratologia, o que importa assinalar para sua definição é a temporalidade como atributo que lhe é inerente, conforme sua própria etimologia já o sublinha, o que faz da crônica um gênero narrativo por excelência. Portanto, é essa espécie de elaboração do tempo que legitima a sua pragmática e a sua fortuna sociocultural. Numa perspectiva histórica, podemos destacar duas acepções principais: desde a antiguidade e sobretudo na Idade Média, ela constitui um relato historiográfico; e, mais recentemente, a crônica é concebida como texto de imprensa.
Na primeira acepção, empregada no início da era cristã, a crônica designava algo como uma listagem ou relação de acontecimentos, ordenados na seqüência linear do tempo, uma cronologia. Situada assim entre os simples anais e a História em sentido atual, a crônica restringia-se ao registro dos eventos, sem examinar-lhes causas nem lhes dar alguma interpretação. Como tal, a crônica faz prevalecer a dinâmica dos eventos como princípio construtor da narrativa de perfil temporal mais ou menos elementar. Tais relatos, quase nunca apoiados em suportes documentais, poderiam ser completados com algo de ficcional, em particular quando envolvia seu desiderato principal que era o de exaltar virtudes e grandezas de um herói: rei, guerreiro, santo, em sua abnegação, em seus gestos magnânimos, etc., e tendo como efeito certa exemplaridade sobre os destinatários. Nesse sentido, a crônica atinge seu ponto modal na alta Idade Média, sendo que daí em diante vai a pouco e pouco aproximando-se do pólo histórico propriamente dito. Bons exemplos dessas características encontram-se nas crônicas de Fernão Lopes (s. XIV), Gomes Eanes de Azurara, Duarte Galvão, Rui de Pina, Garcia de Resende, Damião de Góis ou Duarte Nunes de Leão. Note-se que um Fernão Lopes já fazia progredir a historiografia medieval na direção do sentido moderno pela busca de rigor documental e a valorização do contexto social que envolvia o desdobramento dos acontecimentos relatados. Por outro lado, as anotações simples e impessoais de meras efemérides ou «crônicas breves» passaram a ser denominadas de “cronicões”. Tal distinção, porém, só existe em Português e Espanhol, visto que o Francês e o Inglês subsumem os dois tipos numa mesma rubrica: chronique e chronicle. Em suma, a partir do Renascimento, essa modalidade de narrativa foi se transformando e dando lugar à História em sentido moderno.
Na sua segunda acepção, a crônica como texto de imprensa, designa o registro de um fato ou evento, em geral colhido no quotidiano e aparentemente desprovido de maior significado. Mediante um texto evidentemente pessoal – que emana do estilo ou da subjetividade do autor – o cronista trata de comentar a ocorrência de modo a sublinhar-lhe dimensões psicológicas, políticas, culturais, ideológicas ou outras, que escapam normalmente ao observador menos atento. Desde logo, nota-se que o cronista atua num duplo registro: tanto como narrador que relata fatos ou incidentes, quanto na sua proximidade do ficcionista, armado de reflexão. Nessa acepção mais contemporânea, nota-se acentuada a sua dimensão mais literária. Nesse sentido, o termo entrou em uso no século XIX;. todavia, a crônica não nasceu propriamente com o jornal, embora só quando este se tornou quotidiano e numericamente mais significativo e acessível é que ela se impôs como gênero. Sobretudo a partir do último quartel desse século, ela assumiu seu estatuto atual e só tem crescido o seu prestígio, a ponto de, entre nós, chegar a constituir uma característica da própria Literatura Brasileira, de que são exemplos maiores: Machado de Assis, Olavo Bilac, João do Rio, Lima Barreto, Humberto de Campos, Raquel de Queiroz, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade, Henrique Pongetti, Fernando Sabino, Antonio Callado e muitos outros.
A relação contemporânea entre crônica e imprensa – primeira produção em série dos tempos modernos prenunciando a futura indústria cultural e em especial no seu formato de jornal, meio de comunicação coletiva – impôs certas estratégias discursivas no nível pragmático: busca atingir um número elevado de leitores, junto aos quais exercita certa influência ou orientação ideológica, recorrendo em geral a um discurso de acessibilidade mediana e centrado na atualidade. Sua especificidade acentua-se conforme incida em dimensões distintas: crônica literária, cinematográfica, de moda, esportiva, etc. Além disso, ela nasceu influenciada por outras modalidades discursivas próximas, como o folhetim, a epistolografia, etc. Do primeiro, reteve a regularidade e certas dimensões ficcionais e ensaísticas; e da segunda, herdou o tom dialogal e interpelativo. Enfim, além de sua dimensão propriamente narrativa, é fácil de reconhecer o prestígio literário que o gênero assumiu em sua difusão contemporânea, a ponto de aproximá-lo em sua configuração estética do conto, da novela, etc., e, inversamente, chegando a influir na designação de algumas produções ficcionais de porte: a Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez; ou a Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, por exemplo.

* * *

É hora de passarmos a um gênero mais problemático e mais denso, segundo os teóricos da literatura: o ensaio. Conforme sua etimologia, o termo vem do Latim: exagiu(m), ação de pesar, de ponderar, de avaliar. É significativo o fato de que Montaigne tenha elaborado um quadro em que surgia uma balança como símbolo para ilustrar seu célebre livro. Tanto o Francês essai, o Italiano saggio, o Inglês essay, o Espanhol ensayo, quanto o vernáculo ensaio possuem a mesma significação: «experiência», «exame», «prova», «tentativa».
Num texto fragmentário, velho de 40 anos, o crítico Roberto Alvim Correia solta um enunciado intrigante: «Ensaio, gênero que não comporta edição definitiva. O ensaio não é apenas um gênero literário. Qualifica uma natureza, certa mentalidade.» Intencionalmente ou não, esse culto e bom ensaísta sintetizava nesse aforismo a essência do ensaio e sua problemática definição. E isso o aproxima da idéia de «obra aberta», de Umberto Eco. Já Montaigne, em seu empreendimento, sustentava não haver um final em suas perquirições. E Pierre Villey, que preparou a edição monumental em 3 volumes de Les Essais de Michel de Montaigne[3] – nova edição conforme com o texto do exemplar de Bordeaux, visto que o autor levou 21 anos elaborando e reelaborando essa obra, com os acréscimos que fez até bem perto de sua morte – , afirmava: «Rien ici n’est figé: la pensée, le cadre, le style, tout est souple et se transforme.»
Assim, como o próprio termo parece evidenciar, é quase impossível estabelecer com rigor os limites do ensaio. Eis por que se costuma albergar sob tal rubrica obras bastante diferenciadas, do mesmo modo que alguns autores abusam do termo ao intitular seus livros. Mas há certa unanimidade entre os estudiosos no reconhecer em Montaigne, no seu Essais, publicado em 1580, como o primeiro autor a utilizar o termo e constituir o paradigma do gênero. Isso não impede, todavia, que numa acepção mais lata de ensaio, mesmo sem o uso do termo, possamos admitir, desde a Antiguidade, a existência de obras que constituem verdadeiros ensaios: a Poética, de Aristóteles, os Diálogos, de Platão, as Meditações, de Marco Aurélio; escritos de Sêneca, Plutarco, Cícero, as Confissões, de Santo Agostinho, e muitos outros. Não obstante, na concepção reinante do Renascimento até nós, é o modelo criado por Montaigne que prevalece, posto que sofrendo as alterações que cada época lhe ajuntou.
O ensaio tende a ser texto escrito, mais geralmente em prosa, cuja finalidade reside em propor questões e examinar aporias, sem uma organização pré-estabelecida e freqüentemente com um caráter subjetivo, que recorre sem cessar a validações autorais (citações de clássicos literários e filosóficos). Todavia, em sua estrutura mais ou menos livre, o ensaio costuma configurar-se em seqüências explicativas próprias do discurso argumentativo. Tende também para uma modelização literária a partir de dissertações ou meditações filosóficas, bem como pode assumir intenções ou efeitos semelhantes àqueles do âmbito didático. Segundo a temática examinada, o ensaio pode ser de diversa natureza (literária, estética, filosófica, antropológica, política, etc.) e se distingue claramente do tratado ou manual de caráter expositivo; assim, por exemplo, o Essay concerning Human Understanding (1690), de Locke, estaria situado no campo das investigações epistemológicas, ao passo que o Essay on the Principle of Population (1798), de Malthus, remeteria para a demografia e a geografia humana. É possível perceber um sentido de modéstia nesse uso do termo, visto que esses autores parecem atribuir o sentido de proposta exploratória a esses estudos.
A reflexão teórica sobre a natureza do ensaio é, no entanto, ainda hoje reduzida e hesitante como seu próprio objeto. O ensaio propõe desde logo a questão da classificação dos gêneros literários e da própria noção de literatura. Do meu conhecimento, o texto mais denso e erudito desse esforço para delimitar as características fundamentais do ensaio – que, partindo do horizonte mental que se configura historicamente com as grandes rupturas estéticas, filosóficas, religiosas, tecnológicas, econômicas, etc. introduzidas pelo Renascimento (séc. XVI), examina demoradamente a estrutura da obra de Montaigne, para daí deduzir suas conclusões – é o admirável livro de Sílvio Lima, professor da Universidade de Coimbra, que se intitula mui significativamente Ensaio sobre a Essência do Ensaio[4]. Evidentemente, seria desmesurado ensaiar aqui, numa simples nota proemial, mesmo um resumo de suas teses. Como quer que seja, algumas conclusões podem ser expostas sumariamente. Desse modo, o ensaio assenta, como primeira característica, num «auto-exercício da razão que – por isso mesmo que repele toda e qualquer autoridade externa – busca, dentro da disciplina interior da própria razão legisladora, tornar inteligíveis as coisas»; eis por que o ensaio se rege por «três idéias básicas: a) o auto-exercício das faculdades. b) a liberdade pessoal. c) o esforço constante pelo pensar original»; a segunda característica do ensaio reside no fato de apoiar-se em «experiências, a saber que se destila da vida»[5]; e, em sua terceira característica, o ensaio «tem que ser necessariamente crítico», na medida em que «a crítica é a antítese do obscurantismo e traduz o repúdio do sono dogmático; em resumo, para Sílvio Lima, o ensaio é uma atitude, uma mentalidade, mais que um gênero literário: «o ensaio é uma atitude ginástica do intelecto que, repudiando o autoritarismo, pensa firmemente por si só e por si próprio. Quer dizer, o ensaio é o espírito crítico, o livre-exame.» [pp. 55-56, 60, 63 e 201].
Seguindo de perto os passos do autor referido, Massaud Moisés expõe sua caracterização numa síntese esclarecedora: «Breve no geral, o ensaio contém a discussão livre, pessoal, de um assunto qualquer. O ensaísta... [preocupa-se em] fundamentalmente, desenvolver por escrito um raciocínio, uma intuição, a fim de verificar-lhe o possível acerto: redige como a buscar ver, na concretização verbal, em que medida é defensável o seu entendimento do problema em foco. Para saber se o pensamento que lhe habita a mente é original, estrutura o texto em que ele se mostra autêntico ou disparatado: escrevendo a pensar ou pensando a escrever, o ensaísta só pode avaliar a idéia que lhe povoa a inteligência no próprio ato de escrever. Daí que o ensaio se constitua num exercício ou manifestação de humildade, e faça da brevidade e da clareza de estilo os seus esteios máximos... Conseqüentemente, o ensaio oferece antes de tudo uma sensação de beleza, posto que beleza da forma: o ensaísta é por definição o bom escritor. Em segundo plano se coloca a fruição das idéias expostas... Nesse sentido, o ensaio vale menos pelo acerto ou procedência das idéias que pelos horizontes que descortina... Assim, o ensaio se identifica como um texto redigido com os olhos voltados, ao mesmo tempo, para a beleza da expressão literária e a beleza da verdade que exprime.»[6]
A partir desse breve esboço de definição do ensaio, não é difícil de imaginar nomes vários de espíritos que se exercitaram no gênero, desde o século XVII e por toda parte. Para ficar só com alguns casos exemplares mais perto de nós: Herculano, Oliveira Martins, Fernando Pessoa, Antônio Sérgio, Machado de Assis, Euclydes da Cunha, Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, etc.

* * *

Eis por que, no início dessa nota, afirmei que o texto que se segue situa-se a meio caminho entre a crônica e o ensaio.






Eu estava a pouco mais de quinhentos metros do local. Mas, de minha janela, por entre telhados e árvores, não vi diretamente a cena. Meu filho, David, que fôra até lá, relatou-me emocionado tudo quanto conseguiu guardar do que recolheu. Pouco importa. Mais tarde, a televisão, que tudo transforma em espetáculo, ofereceria aquele prato-cheio mesmo para quem estivesse a milhares de quilômetros de distância e provavelmente com emoção longínqua ou indiferente. De qualquer modo, a platéia, que aguardava jubilosa o desfecho daquela pequena história muda, o incentivava, da calçada em frente à torre da ‘TV Cidade’ (Canal 8): «Um, dois, três! Vai, salta!»; «Esse cabra merece é umas pauladas pra deixar de palhaçada.»; «Ele tem mesmo que pular, pois se descer, vai morrer de porrada aqui em baixo.», etc. Uma senhora de elegante aparência, imitando a postura de quem vai mergulhar numa piscina, gritava: «Vai, salta assim, de bico...»; enquanto os veículos, molestados pela multidão, circulavam com dificuldade pela Avenida Desembargador Moreira, em Fortaleza.

Do alto do seu palco, a 108 metros do chão, sozinho com sua consciência, João Ninguém parecia não escutar os incentivos de seu público, que, na sua maioria, era constituído por representantes dessa pequena parcela de brasileiros que conseguem comer três ou mais refeições por dia, veste-se bem e dorme confortavelmente em habitações próprias. Entre estes, havia inclusive muitos alunos do Colégio Santo Inácio que, ao invés do espetáculo soporífero da sala de aula, preferiram aquele outro, indubitavelmente mais emocionante e cheio de suspense.

Quando, porém, João Ninguém saltou, aquela senhora desmaiou!

* * *

Passada a forte comoção em que fiquei por um bom tempo, pensei em comentar o fato. A primeira idéia que me ocorreu foi um dos motes da canção de Chico Buarque, que poderia muito bem servir de título para esta matéria: «Morreu na contra-mão, atrapalhando o tráfego». Todavia, logo desisti da intenção de utilizá-lo, porque o professor Morais que, por falta de programa definido para sua candidatura populista à Prefeitura de Fortaleza, se esmera em usar o tempo gratuito de que dispõe na TV para prostituir emocionalmente seus possíveis eleitores: e ele o fez antes de mim, explorando ardilosamente a tragédia de João Ninguém.

Durante o dia todo, aquele acontecimento não dava trégua a meu espírito. As idéias se atropelavam, densamente carregadas de emoção. E numa dessas reflexões soltas, não sei por que associações, pensei em Roberto Campos, ministro do Planejamento do primeiro governo após o Golpe de 1964. Sim, porque foi ele um dos principais responsáveis pela inauguração do regime que instaurou no País o terrorismo de Estado militarizado contra as liberdades civis. De fato, numa de suas primeiras falas, ele afirmara categórico que «havia 25 milhões de brasileiros sobrando...». Como ele jamais explicitou quais deveriam ser os critérios para escolha daqueles que seriam eliminados, nem, muito menos, que procedimentos seriam adotados para tanto, posso supor, com a mesma falta de ética, porém com um raciocínio logicamente convergente, que o João Ninguém ‑ que atentara contra a própria vida, saltando do alto da torre da TV Cidade, de Fortaleza ‑ não fez mais do que realizar concretamente aquilo que estava contido na afirmação programática do também ex-Senador mato-grossense. E, dentro da mesma lógica, fria e competente, posso inferir ainda que a figura do Deputado Justo Veríssimo, criada por Chico Anísio, não passa de pálida caricatura de personagens reais que exercem o poder de atormentar os destinos desta nação.

Mas como sou apenas um cidadão qualquer, desta infeliz República que ainda não teve a sorte de possuir os governos que o seu povo merece, como sou simplesmente um cidadão comum, repito, e não, uma dessas maravilhosas máquinas eletrônicas, eficientes e perfeitas, voltei a me solidarizar com a tragédia de João Ninguém. Deixei de lado as análises racionais e outra vez as minhas idéias se misturavam com as emoções.

Estava assim a pensar em Erasmo de Roterdão e a tentar extrair algum ensinamento a partir daquele fato, quando a TV me trouxe a notícia de que, quinze dias após o terremoto da cidade do México (1985), as equipes de resgate localizaram, vivo, um garoto de 9 anos de idade. Espontaneamente aproximei os dois acontecimentos.

Mas que vínculo poderia unir esses dois gestos humanos, à primeira vista, diametralmente opostos? Com efeito, na sua aparência, um se apresenta como o simétrico oposto do outro. Contudo, nada nos impede de refletir um pouco mais sobre as possíveis significações desses dois eventos e procurar descobrir algum elo mais profundo que possa uni-los.

Portanto, seria legítimo indagar: que estranha força, que insondável razão teria mantido vivo esse garoto mexicano, mergulhado na escuridão dos escombros, num inferno de concreto? Que misterioso impulso o teria levado a lutar contra o desespero e a crer na possibilidade de sua sobrevivência? Por outro lado, no caso de João Ninguém, que saltou da torre do Canal 8, assim como no de inúmeras pessoas que se suicidam, que explicação esclareceria o conjunto de motivos que arrasta a esse gesto enigmático e paroxístico? Não expressaria ele, paradoxalmente, a afirmação do desejo de existir? Não seria ele a suprema manifestação do indecifrável impulso vital que conduziria alguém a negá-lo, contraditoriamente, quando antes já lhe negaram condições emocionais ou sociais para continuar existindo? Não residiria nesse gesto final a realização desesperada da liberdade de escolha, quando as alternativas se tornaram insuportáveis, e que poria em evidência o fato de a vida merecer ser vivida com um mínimo que seja de dignidade e de sentido? Não estaria, porém, nessa abolição do tênue limite que sustenta a dialética entre a vida e a morte, aquele laço mais profundo que envolve esses dois acontecimentos?

O que parece definir o suicídio e o torna mais chocante ‑ e que fez por certo desmaiar aquela dama elegante que, alguns segundos antes, encarava jocosamente a figura anônima de João Ninguém ‑ é o seu caráter de gesto brusco e subitâneo. Eis por que, normalmente, não percebemos como suicidas milhares de outros seres humanos que, como João Ninguém, são levados pela ordem social vigente a escolher outros caminhos, mais lentos porém inexoráveis, que conduzem à autodestruição, inclusive o da marginalidade e da delinqüência que tende a enfrentar desesperadamente a eficácia repressiva da sociedade. E mais uma vez a razão parece estar com o sábio Pascal quando afirma que os extremos se tocam.

Como milhões de outros cidadãos deste país, João Ninguém estava desempregado e se sentia perseguido. Seria, no entanto, fácil ceder à tentação de estabelecer uma relação imediata e simplista entre tal situação e o seu gesto fatal. Ou, mais simploriamente, admitir que se tratava de um louco histriônico, conforme insinuavam alguns comentários de certos espectadores. E isso nos dispensaria de refletir mais demoradamente sobre a significação de sua conduta.

Acontece que João Ninguém lutara e se debatera, embora inutilmente. Ele havia buscado por longo tempo uma saída para sua situação de sofrimento e miséria junto àqueles que ele visualizara como podendo oferecer-lhe tal solução. Contudo, malograra também nesse intento. Ocorreu-lhe, certamente, a decisão de se recusar a permanecer como um número a mais no anonimato das estatísticas da fome e da falta de trabalho. Afinal de contas, ele era um candidato preferencial a habitante (ou tinha todo o direito de sê-lo) desse hediondo país apresentado pelo Mão-Branca, através das ondas da televisão, que nos transportavam todas as noites de sexta-feira para um mundo de desgraças transformadas em espetáculo, e que realizava o prodígio de fundir o proletariado econômico com o proletariado afetivo. Este último ‑ conforme lembrava Moreno[7], psiquiatra romeno, discípulo e colaborador de Freud ‑ muito mais vasto do que o primeiro, já que atravessa todas as classes sociais. E o público bem pensante de João Ninguém ali estava para confirmar essa realidade dolorosa.

João Ninguém decidiu, então, que dali para frente seria ele próprio quem dirigiria o espetáculo. Talvez inconscientemente, mas não foi, com certeza, por acaso, que escolhera a torre da TV Cidade, canal 8, para palco de suas funções. Pois não era de lá que reinava, soberano, o Mão-Branca, com tudo quanto significa de nefando? E João Ninguém deliberara, conscientemente, a não ser mais um mero figurante. Posto que por um fugaz momento, o espetáculo seria só seu: ele seria o criador, o produtor, o realizador, o diretor, o agente publicitário, e, sobretudo, desempenharia o papel de ator principal no centro do cenário que escolhera cuidadosamente. Daquele momento em diante, tudo dependeria de sua vontade livre e soberana. E foi, talvez, o único instante, de sua vida de cidadão sem-nome, em que não conseguiram impedir o exercício de sua liberdade.

Mas tentaram. Embora sem êxito. De fato, o próprio Rei dos programas anteriores, o mencionado Mão-Branca, subiu pela enorme escada dos bombeiros e ensaiou de forma solerte roubar-lhe o espetáculo. Mesmos os bombeiros, esses anônimos heróis da solidariedade, buscaram também, equivocadamente, obstaculizar aquele momento mais decisivo de sua carreira de cidadão sem-face. Do alto, porém, dos seus 108 metros, longe do inferno, ou melhor, da terra, João Ninguém demonstrou a todos que só lhe deixaram um único direito: o da definição derradeira...

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A despeito da imensa dificuldade de compreender e explicar comportamentos dessa natureza, creio ter percebido, numa como revelação, ‑ e agora estou a falar sério ‑, quais as razões do gesto de João Ninguém. São três essas razões. A primeira é de ordem cívica: João Ninguém decidiu, com sua morte, reduzir as despesas nacionais e assim colaborar generosamente para o pagamento de nossa dívida externa e de nossa dívida pública. A segunda razão de sua conduta é de natureza mais literária ou estética: apesar de sua modesta origem, ele entreviu que poderia cooperar para manter viva a tradição da tragédia grega e, assim, ofereceu o seu pequeno drama pessoal para o aumento desse importante acervo da cultura humana; e o seu gesto aí ficará de forma imorredoura para inspiração de quem quiser aproveitá-lo na música, na ficção, na poesia, no teatro ou no cinema. Finalmente, a terceira das razões, em que João se fundou para agir daquele modo, situa-se mais propriamente no plano religioso: com seu humilde sacrifício, ele deliberou refazer a crucifixão do Deus dos cristãos, como se quisesse fornecer uma ousada resposta à indagação do apóstolo Paulo ‑ «Morte, onde está tua vitória?» E que João Ninguém não se inquiete, pois o seu exemplo certamente crescerá e dará bons frutos: outros muitos cidadãos sem-nome também haverão de crucificar suas pobres existências para gáudio de uns poucos.

Contudo, não pretendo concluir este esboço de reflexão, sem antes fazer um apelo e uma sugestão, a fim de evitar que o meu esforço se dilua num simples comentário sem conseqüências práticas. Assim, já que as instituições públicas, especificamente criadas para tal, não asseguram os direitos elementares do cidadão comum, gostaria de solicitar às autoridades sanitárias e à Sociedade Protetora dos Animais que nos protejam daqueles programas que atentam contra a existência normal dos humanos viventes. E, se de todo isso não for levado em conta, uma vez que tudo se transmuda em espetáculo e mercadoria nesta sociedade consumista, sugiro que a TV Cidade venda, alugue ou ceda o videoteipe desse frágil gesto de João Ninguém para o programa do FANTASTICO. Isso tornaria mais democrático «o admirável show da vida!»

FORTALEZA, 14 de Maio de 2001.

O autor é Doutor em Sociologia pela Université François Rabelais, de Tours (França), Pós-doutor em História antropológica pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris), membro do Instituto Histórico do Ceará, da Academia Cearense de Letras e membro titular da Association Internationale des Sociologues de Langue Française (AISLF). Professor Titular de Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Pesquisador 1–A do CNPq. Autor de Contrapontos – ensaios de crítica, São Paulo: AnaBlume, 1998, etc.


Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes
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[1] Num lampejo de lucidez, “João Ninguém” revelou, com seu ato extremo, de nossa sociedade toda a hediondez. Na época do suicídio desse cidadão “anônimo”, em 1985, achei conveniente, talvez por solidariedade, assinar o texto que elaborei logo de sua ocorrência com o nome fictício de Zé Brasilino. Assim, mais do que o uso de um pseudônimo, esse meu gesto constituía oferecer uma identificação coletiva para os milhões de subcidadãos aqui representados de um lado e de outro – protagonista e espectadores – desse cenário de dor e opróbrio.

[2].”Mão Branca” era o apelido que se atribuía um repórter policial que à época apresentava seu programa hediondo e de evidente mau gosto, nas noites de sexta-feira, num dos canais de TV de Fortaleza, com uma irritante voz de taquara rachada e de cuja figura só a mão aparecia portando uma luva branca. Mesmo assim gozava de ampla audiência popular, como aliás ocorre com esse gênero de programação em qualquer parte do País.

[3] Paris: Félix Alcan, 1930-1931.

[4] Col. «Studium». Lisboa: Livraria Acadêmica / São Paulo: Saraiva & Cia., 1946.

[5] Camões exprime idéia semelhante num verso magnífico de Os Lusíadas: «O saber de experiência feito.»

[6] Cf.: Dicionário de Termos Literários, 2ª ed. revista. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 177.

[7] Jacob Lévy Moreno (Bucareste, 1896 – Beacon, N.Y., 1974). Na verdade, Moreno nasceu numa embarcação sobre o Danúbio, porém foi registrado em Bucareste. Estudou medicina em Viena, onde, em 1921, criou e fez funcionar durante alguns anos o Stegreiftheater (Teatro de Improviso), no qual tanto os atores quanto o público tinham o direito de expressar-se: esse campo de observação lhe forneceu a noção de desrecalque pulsional, elemento fundamental de suas reflexões sobre o psicodrama, que amplia a idéia aristotélica de catarse. Relata ele que foi ao observar atentamente as brincadeiras infantis nos parques de Viena que lhe nasceu a concepção da sociometria, estudo que sistematizou depois, sobre as afinidades e rejeições que intervêm no seio dos grupos humanos. Em 1925, Moreno emigrou para os EE. UU., instalando-se em Beacon, às margens do Hudson, até sua morte em 1974. Além de ter introduzido as técnicas dramáticas na psicoterapia, em especial a de grupo, é em 1934 que publica Who Shall Survive? [2ª ed., Beacon House, N.Y., 1953], sua obra mais importante: foi nela que, além de sistematizar suas concepções sociométricas, estabelece uma analogia entre a curva da mais valia na sociedade capitalista e a curva das escolhas e rejeições afetivas no seio da mesma sociedade, e é aí também que reflete sobre o «proletariado afetivo» mais amplo do que o econômico, visto que atravessa toda a estrutura de classes, etc.

domingo, 2 de março de 2008

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Este é um espaço que tem o intuito de difundir e provocar reflexões sobre as mais diversas dimensões do conhecimento e da cultura. Como também um local para denúncias, debates, discussões e desabafos.

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