Eduardo Diatahy B. de Menezes:
A MORTE DE JOÃO NINGUÉM[1], AO VIVO, PELA TV,
NO PAÍS DO MÃO BRANCA[2]
Nota Preliminar – Penso que seria interessante e legítimo anteceder o presente texto com algumas reflexões preambulares acerca de sua natureza como gênero e discurso, em especial tendo-se em conta sua temática e seu estilo intermediário. Reflexões, portanto, que buscam examinar justamente o trabalho conceptual à volta do ensaio e da crônica.
No meu entendimento o presente texto situa-se a meio caminho entre a crônica e o ensaio. Essa tomada de posição exigiria algum esclarecimento, numa como prefação quase propedêutica, que dissesse das características dessas duas modalidades discursivas.
Examinemos a crônica em primeiro lugar. Na sua origem, o vocábulo remete ao termo que vem do Grego: krónos, tempo; e em Latim era dito annu(m), ano; ânua, anais. O termo crônica nomeia um tipo de narrativa cuja definição apresenta os seus problemas, desde logo por não se tratar de, estritamente falando, um gênero literário, no mesmo sentido em que consideramos como tal o romance, a tragédia ou a écloga. No âmbito da narratologia, o que importa assinalar para sua definição é a temporalidade como atributo que lhe é inerente, conforme sua própria etimologia já o sublinha, o que faz da crônica um gênero narrativo por excelência. Portanto, é essa espécie de elaboração do tempo que legitima a sua pragmática e a sua fortuna sociocultural. Numa perspectiva histórica, podemos destacar duas acepções principais: desde a antiguidade e sobretudo na Idade Média, ela constitui um relato historiográfico; e, mais recentemente, a crônica é concebida como texto de imprensa.
Na primeira acepção, empregada no início da era cristã, a crônica designava algo como uma listagem ou relação de acontecimentos, ordenados na seqüência linear do tempo, uma cronologia. Situada assim entre os simples anais e a História em sentido atual, a crônica restringia-se ao registro dos eventos, sem examinar-lhes causas nem lhes dar alguma interpretação. Como tal, a crônica faz prevalecer a dinâmica dos eventos como princípio construtor da narrativa de perfil temporal mais ou menos elementar. Tais relatos, quase nunca apoiados em suportes documentais, poderiam ser completados com algo de ficcional, em particular quando envolvia seu desiderato principal que era o de exaltar virtudes e grandezas de um herói: rei, guerreiro, santo, em sua abnegação, em seus gestos magnânimos, etc., e tendo como efeito certa exemplaridade sobre os destinatários. Nesse sentido, a crônica atinge seu ponto modal na alta Idade Média, sendo que daí em diante vai a pouco e pouco aproximando-se do pólo histórico propriamente dito. Bons exemplos dessas características encontram-se nas crônicas de Fernão Lopes (s. XIV), Gomes Eanes de Azurara, Duarte Galvão, Rui de Pina, Garcia de Resende, Damião de Góis ou Duarte Nunes de Leão. Note-se que um Fernão Lopes já fazia progredir a historiografia medieval na direção do sentido moderno pela busca de rigor documental e a valorização do contexto social que envolvia o desdobramento dos acontecimentos relatados. Por outro lado, as anotações simples e impessoais de meras efemérides ou «crônicas breves» passaram a ser denominadas de “cronicões”. Tal distinção, porém, só existe em Português e Espanhol, visto que o Francês e o Inglês subsumem os dois tipos numa mesma rubrica: chronique e chronicle. Em suma, a partir do Renascimento, essa modalidade de narrativa foi se transformando e dando lugar à História em sentido moderno.
Na sua segunda acepção, a crônica como texto de imprensa, designa o registro de um fato ou evento, em geral colhido no quotidiano e aparentemente desprovido de maior significado. Mediante um texto evidentemente pessoal – que emana do estilo ou da subjetividade do autor – o cronista trata de comentar a ocorrência de modo a sublinhar-lhe dimensões psicológicas, políticas, culturais, ideológicas ou outras, que escapam normalmente ao observador menos atento. Desde logo, nota-se que o cronista atua num duplo registro: tanto como narrador que relata fatos ou incidentes, quanto na sua proximidade do ficcionista, armado de reflexão. Nessa acepção mais contemporânea, nota-se acentuada a sua dimensão mais literária. Nesse sentido, o termo entrou em uso no século XIX;. todavia, a crônica não nasceu propriamente com o jornal, embora só quando este se tornou quotidiano e numericamente mais significativo e acessível é que ela se impôs como gênero. Sobretudo a partir do último quartel desse século, ela assumiu seu estatuto atual e só tem crescido o seu prestígio, a ponto de, entre nós, chegar a constituir uma característica da própria Literatura Brasileira, de que são exemplos maiores: Machado de Assis, Olavo Bilac, João do Rio, Lima Barreto, Humberto de Campos, Raquel de Queiroz, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade, Henrique Pongetti, Fernando Sabino, Antonio Callado e muitos outros.
A relação contemporânea entre crônica e imprensa – primeira produção em série dos tempos modernos prenunciando a futura indústria cultural e em especial no seu formato de jornal, meio de comunicação coletiva – impôs certas estratégias discursivas no nível pragmático: busca atingir um número elevado de leitores, junto aos quais exercita certa influência ou orientação ideológica, recorrendo em geral a um discurso de acessibilidade mediana e centrado na atualidade. Sua especificidade acentua-se conforme incida em dimensões distintas: crônica literária, cinematográfica, de moda, esportiva, etc. Além disso, ela nasceu influenciada por outras modalidades discursivas próximas, como o folhetim, a epistolografia, etc. Do primeiro, reteve a regularidade e certas dimensões ficcionais e ensaísticas; e da segunda, herdou o tom dialogal e interpelativo. Enfim, além de sua dimensão propriamente narrativa, é fácil de reconhecer o prestígio literário que o gênero assumiu em sua difusão contemporânea, a ponto de aproximá-lo em sua configuração estética do conto, da novela, etc., e, inversamente, chegando a influir na designação de algumas produções ficcionais de porte: a Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez; ou a Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, por exemplo.
* * *
É hora de passarmos a um gênero mais problemático e mais denso, segundo os teóricos da literatura: o ensaio. Conforme sua etimologia, o termo vem do Latim: exagiu(m), ação de pesar, de ponderar, de avaliar. É significativo o fato de que Montaigne tenha elaborado um quadro em que surgia uma balança como símbolo para ilustrar seu célebre livro. Tanto o Francês essai, o Italiano saggio, o Inglês essay, o Espanhol ensayo, quanto o vernáculo ensaio possuem a mesma significação: «experiência», «exame», «prova», «tentativa».
Num texto fragmentário, velho de 40 anos, o crítico Roberto Alvim Correia solta um enunciado intrigante: «Ensaio, gênero que não comporta edição definitiva. O ensaio não é apenas um gênero literário. Qualifica uma natureza, certa mentalidade.» Intencionalmente ou não, esse culto e bom ensaísta sintetizava nesse aforismo a essência do ensaio e sua problemática definição. E isso o aproxima da idéia de «obra aberta», de Umberto Eco. Já Montaigne, em seu empreendimento, sustentava não haver um final em suas perquirições. E Pierre Villey, que preparou a edição monumental em 3 volumes de Les Essais de Michel de Montaigne[3] – nova edição conforme com o texto do exemplar de Bordeaux, visto que o autor levou 21 anos elaborando e reelaborando essa obra, com os acréscimos que fez até bem perto de sua morte – , afirmava: «Rien ici n’est figé: la pensée, le cadre, le style, tout est souple et se transforme.»
Assim, como o próprio termo parece evidenciar, é quase impossível estabelecer com rigor os limites do ensaio. Eis por que se costuma albergar sob tal rubrica obras bastante diferenciadas, do mesmo modo que alguns autores abusam do termo ao intitular seus livros. Mas há certa unanimidade entre os estudiosos no reconhecer em Montaigne, no seu Essais, publicado em 1580, como o primeiro autor a utilizar o termo e constituir o paradigma do gênero. Isso não impede, todavia, que numa acepção mais lata de ensaio, mesmo sem o uso do termo, possamos admitir, desde a Antiguidade, a existência de obras que constituem verdadeiros ensaios: a Poética, de Aristóteles, os Diálogos, de Platão, as Meditações, de Marco Aurélio; escritos de Sêneca, Plutarco, Cícero, as Confissões, de Santo Agostinho, e muitos outros. Não obstante, na concepção reinante do Renascimento até nós, é o modelo criado por Montaigne que prevalece, posto que sofrendo as alterações que cada época lhe ajuntou.
O ensaio tende a ser texto escrito, mais geralmente em prosa, cuja finalidade reside em propor questões e examinar aporias, sem uma organização pré-estabelecida e freqüentemente com um caráter subjetivo, que recorre sem cessar a validações autorais (citações de clássicos literários e filosóficos). Todavia, em sua estrutura mais ou menos livre, o ensaio costuma configurar-se em seqüências explicativas próprias do discurso argumentativo. Tende também para uma modelização literária a partir de dissertações ou meditações filosóficas, bem como pode assumir intenções ou efeitos semelhantes àqueles do âmbito didático. Segundo a temática examinada, o ensaio pode ser de diversa natureza (literária, estética, filosófica, antropológica, política, etc.) e se distingue claramente do tratado ou manual de caráter expositivo; assim, por exemplo, o Essay concerning Human Understanding (1690), de Locke, estaria situado no campo das investigações epistemológicas, ao passo que o Essay on the Principle of Population (1798), de Malthus, remeteria para a demografia e a geografia humana. É possível perceber um sentido de modéstia nesse uso do termo, visto que esses autores parecem atribuir o sentido de proposta exploratória a esses estudos.
A reflexão teórica sobre a natureza do ensaio é, no entanto, ainda hoje reduzida e hesitante como seu próprio objeto. O ensaio propõe desde logo a questão da classificação dos gêneros literários e da própria noção de literatura. Do meu conhecimento, o texto mais denso e erudito desse esforço para delimitar as características fundamentais do ensaio – que, partindo do horizonte mental que se configura historicamente com as grandes rupturas estéticas, filosóficas, religiosas, tecnológicas, econômicas, etc. introduzidas pelo Renascimento (séc. XVI), examina demoradamente a estrutura da obra de Montaigne, para daí deduzir suas conclusões – é o admirável livro de Sílvio Lima, professor da Universidade de Coimbra, que se intitula mui significativamente Ensaio sobre a Essência do Ensaio[4]. Evidentemente, seria desmesurado ensaiar aqui, numa simples nota proemial, mesmo um resumo de suas teses. Como quer que seja, algumas conclusões podem ser expostas sumariamente. Desse modo, o ensaio assenta, como primeira característica, num «auto-exercício da razão que – por isso mesmo que repele toda e qualquer autoridade externa – busca, dentro da disciplina interior da própria razão legisladora, tornar inteligíveis as coisas»; eis por que o ensaio se rege por «três idéias básicas: a) o auto-exercício das faculdades. b) a liberdade pessoal. c) o esforço constante pelo pensar original»; a segunda característica do ensaio reside no fato de apoiar-se em «experiências, a saber que se destila da vida»[5]; e, em sua terceira característica, o ensaio «tem que ser necessariamente crítico», na medida em que «a crítica é a antítese do obscurantismo e traduz o repúdio do sono dogmático; em resumo, para Sílvio Lima, o ensaio é uma atitude, uma mentalidade, mais que um gênero literário: «o ensaio é uma atitude ginástica do intelecto que, repudiando o autoritarismo, pensa firmemente por si só e por si próprio. Quer dizer, o ensaio é o espírito crítico, o livre-exame.» [pp. 55-56, 60, 63 e 201].
Seguindo de perto os passos do autor referido, Massaud Moisés expõe sua caracterização numa síntese esclarecedora: «Breve no geral, o ensaio contém a discussão livre, pessoal, de um assunto qualquer. O ensaísta... [preocupa-se em] fundamentalmente, desenvolver por escrito um raciocínio, uma intuição, a fim de verificar-lhe o possível acerto: redige como a buscar ver, na concretização verbal, em que medida é defensável o seu entendimento do problema em foco. Para saber se o pensamento que lhe habita a mente é original, estrutura o texto em que ele se mostra autêntico ou disparatado: escrevendo a pensar ou pensando a escrever, o ensaísta só pode avaliar a idéia que lhe povoa a inteligência no próprio ato de escrever. Daí que o ensaio se constitua num exercício ou manifestação de humildade, e faça da brevidade e da clareza de estilo os seus esteios máximos... Conseqüentemente, o ensaio oferece antes de tudo uma sensação de beleza, posto que beleza da forma: o ensaísta é por definição o bom escritor. Em segundo plano se coloca a fruição das idéias expostas... Nesse sentido, o ensaio vale menos pelo acerto ou procedência das idéias que pelos horizontes que descortina... Assim, o ensaio se identifica como um texto redigido com os olhos voltados, ao mesmo tempo, para a beleza da expressão literária e a beleza da verdade que exprime.»[6]
A partir desse breve esboço de definição do ensaio, não é difícil de imaginar nomes vários de espíritos que se exercitaram no gênero, desde o século XVII e por toda parte. Para ficar só com alguns casos exemplares mais perto de nós: Herculano, Oliveira Martins, Fernando Pessoa, Antônio Sérgio, Machado de Assis, Euclydes da Cunha, Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, etc.
* * *
Eis por que, no início dessa nota, afirmei que o texto que se segue situa-se a meio caminho entre a crônica e o ensaio.
Eu estava a pouco mais de quinhentos metros do local. Mas, de minha janela, por entre telhados e árvores, não vi diretamente a cena. Meu filho, David, que fôra até lá, relatou-me emocionado tudo quanto conseguiu guardar do que recolheu. Pouco importa. Mais tarde, a televisão, que tudo transforma em espetáculo, ofereceria aquele prato-cheio mesmo para quem estivesse a milhares de quilômetros de distância e provavelmente com emoção longínqua ou indiferente. De qualquer modo, a platéia, que aguardava jubilosa o desfecho daquela pequena história muda, o incentivava, da calçada em frente à torre da ‘TV Cidade’ (Canal 8): «Um, dois, três! Vai, salta!»; «Esse cabra merece é umas pauladas pra deixar de palhaçada.»; «Ele tem mesmo que pular, pois se descer, vai morrer de porrada aqui em baixo.», etc. Uma senhora de elegante aparência, imitando a postura de quem vai mergulhar numa piscina, gritava: «Vai, salta assim, de bico...»; enquanto os veículos, molestados pela multidão, circulavam com dificuldade pela Avenida Desembargador Moreira, em Fortaleza.
Do alto do seu palco, a 108 metros do chão, sozinho com sua consciência, João Ninguém parecia não escutar os incentivos de seu público, que, na sua maioria, era constituído por representantes dessa pequena parcela de brasileiros que conseguem comer três ou mais refeições por dia, veste-se bem e dorme confortavelmente em habitações próprias. Entre estes, havia inclusive muitos alunos do Colégio Santo Inácio que, ao invés do espetáculo soporífero da sala de aula, preferiram aquele outro, indubitavelmente mais emocionante e cheio de suspense.
Quando, porém, João Ninguém saltou, aquela senhora desmaiou!
* * *
Passada a forte comoção em que fiquei por um bom tempo, pensei em comentar o fato. A primeira idéia que me ocorreu foi um dos motes da canção de Chico Buarque, que poderia muito bem servir de título para esta matéria: «Morreu na contra-mão, atrapalhando o tráfego». Todavia, logo desisti da intenção de utilizá-lo, porque o professor Morais que, por falta de programa definido para sua candidatura populista à Prefeitura de Fortaleza, se esmera em usar o tempo gratuito de que dispõe na TV para prostituir emocionalmente seus possíveis eleitores: e ele o fez antes de mim, explorando ardilosamente a tragédia de João Ninguém.
Durante o dia todo, aquele acontecimento não dava trégua a meu espírito. As idéias se atropelavam, densamente carregadas de emoção. E numa dessas reflexões soltas, não sei por que associações, pensei em Roberto Campos, ministro do Planejamento do primeiro governo após o Golpe de 1964. Sim, porque foi ele um dos principais responsáveis pela inauguração do regime que instaurou no País o terrorismo de Estado militarizado contra as liberdades civis. De fato, numa de suas primeiras falas, ele afirmara categórico que «havia 25 milhões de brasileiros sobrando...». Como ele jamais explicitou quais deveriam ser os critérios para escolha daqueles que seriam eliminados, nem, muito menos, que procedimentos seriam adotados para tanto, posso supor, com a mesma falta de ética, porém com um raciocínio logicamente convergente, que o João Ninguém ‑ que atentara contra a própria vida, saltando do alto da torre da TV Cidade, de Fortaleza ‑ não fez mais do que realizar concretamente aquilo que estava contido na afirmação programática do também ex-Senador mato-grossense. E, dentro da mesma lógica, fria e competente, posso inferir ainda que a figura do Deputado Justo Veríssimo, criada por Chico Anísio, não passa de pálida caricatura de personagens reais que exercem o poder de atormentar os destinos desta nação.
Mas como sou apenas um cidadão qualquer, desta infeliz República que ainda não teve a sorte de possuir os governos que o seu povo merece, como sou simplesmente um cidadão comum, repito, e não, uma dessas maravilhosas máquinas eletrônicas, eficientes e perfeitas, voltei a me solidarizar com a tragédia de João Ninguém. Deixei de lado as análises racionais e outra vez as minhas idéias se misturavam com as emoções.
Estava assim a pensar em Erasmo de Roterdão e a tentar extrair algum ensinamento a partir daquele fato, quando a TV me trouxe a notícia de que, quinze dias após o terremoto da cidade do México (1985), as equipes de resgate localizaram, vivo, um garoto de 9 anos de idade. Espontaneamente aproximei os dois acontecimentos.
Mas que vínculo poderia unir esses dois gestos humanos, à primeira vista, diametralmente opostos? Com efeito, na sua aparência, um se apresenta como o simétrico oposto do outro. Contudo, nada nos impede de refletir um pouco mais sobre as possíveis significações desses dois eventos e procurar descobrir algum elo mais profundo que possa uni-los.
Portanto, seria legítimo indagar: que estranha força, que insondável razão teria mantido vivo esse garoto mexicano, mergulhado na escuridão dos escombros, num inferno de concreto? Que misterioso impulso o teria levado a lutar contra o desespero e a crer na possibilidade de sua sobrevivência? Por outro lado, no caso de João Ninguém, que saltou da torre do Canal 8, assim como no de inúmeras pessoas que se suicidam, que explicação esclareceria o conjunto de motivos que arrasta a esse gesto enigmático e paroxístico? Não expressaria ele, paradoxalmente, a afirmação do desejo de existir? Não seria ele a suprema manifestação do indecifrável impulso vital que conduziria alguém a negá-lo, contraditoriamente, quando antes já lhe negaram condições emocionais ou sociais para continuar existindo? Não residiria nesse gesto final a realização desesperada da liberdade de escolha, quando as alternativas se tornaram insuportáveis, e que poria em evidência o fato de a vida merecer ser vivida com um mínimo que seja de dignidade e de sentido? Não estaria, porém, nessa abolição do tênue limite que sustenta a dialética entre a vida e a morte, aquele laço mais profundo que envolve esses dois acontecimentos?
O que parece definir o suicídio e o torna mais chocante ‑ e que fez por certo desmaiar aquela dama elegante que, alguns segundos antes, encarava jocosamente a figura anônima de João Ninguém ‑ é o seu caráter de gesto brusco e subitâneo. Eis por que, normalmente, não percebemos como suicidas milhares de outros seres humanos que, como João Ninguém, são levados pela ordem social vigente a escolher outros caminhos, mais lentos porém inexoráveis, que conduzem à autodestruição, inclusive o da marginalidade e da delinqüência que tende a enfrentar desesperadamente a eficácia repressiva da sociedade. E mais uma vez a razão parece estar com o sábio Pascal quando afirma que os extremos se tocam.
Como milhões de outros cidadãos deste país, João Ninguém estava desempregado e se sentia perseguido. Seria, no entanto, fácil ceder à tentação de estabelecer uma relação imediata e simplista entre tal situação e o seu gesto fatal. Ou, mais simploriamente, admitir que se tratava de um louco histriônico, conforme insinuavam alguns comentários de certos espectadores. E isso nos dispensaria de refletir mais demoradamente sobre a significação de sua conduta.
Acontece que João Ninguém lutara e se debatera, embora inutilmente. Ele havia buscado por longo tempo uma saída para sua situação de sofrimento e miséria junto àqueles que ele visualizara como podendo oferecer-lhe tal solução. Contudo, malograra também nesse intento. Ocorreu-lhe, certamente, a decisão de se recusar a permanecer como um número a mais no anonimato das estatísticas da fome e da falta de trabalho. Afinal de contas, ele era um candidato preferencial a habitante (ou tinha todo o direito de sê-lo) desse hediondo país apresentado pelo Mão-Branca, através das ondas da televisão, que nos transportavam todas as noites de sexta-feira para um mundo de desgraças transformadas em espetáculo, e que realizava o prodígio de fundir o proletariado econômico com o proletariado afetivo. Este último ‑ conforme lembrava Moreno[7], psiquiatra romeno, discípulo e colaborador de Freud ‑ muito mais vasto do que o primeiro, já que atravessa todas as classes sociais. E o público bem pensante de João Ninguém ali estava para confirmar essa realidade dolorosa.
João Ninguém decidiu, então, que dali para frente seria ele próprio quem dirigiria o espetáculo. Talvez inconscientemente, mas não foi, com certeza, por acaso, que escolhera a torre da TV Cidade, canal 8, para palco de suas funções. Pois não era de lá que reinava, soberano, o Mão-Branca, com tudo quanto significa de nefando? E João Ninguém deliberara, conscientemente, a não ser mais um mero figurante. Posto que por um fugaz momento, o espetáculo seria só seu: ele seria o criador, o produtor, o realizador, o diretor, o agente publicitário, e, sobretudo, desempenharia o papel de ator principal no centro do cenário que escolhera cuidadosamente. Daquele momento em diante, tudo dependeria de sua vontade livre e soberana. E foi, talvez, o único instante, de sua vida de cidadão sem-nome, em que não conseguiram impedir o exercício de sua liberdade.
Mas tentaram. Embora sem êxito. De fato, o próprio Rei dos programas anteriores, o mencionado Mão-Branca, subiu pela enorme escada dos bombeiros e ensaiou de forma solerte roubar-lhe o espetáculo. Mesmos os bombeiros, esses anônimos heróis da solidariedade, buscaram também, equivocadamente, obstaculizar aquele momento mais decisivo de sua carreira de cidadão sem-face. Do alto, porém, dos seus 108 metros, longe do inferno, ou melhor, da terra, João Ninguém demonstrou a todos que só lhe deixaram um único direito: o da definição derradeira...
* * *
A despeito da imensa dificuldade de compreender e explicar comportamentos dessa natureza, creio ter percebido, numa como revelação, ‑ e agora estou a falar sério ‑, quais as razões do gesto de João Ninguém. São três essas razões. A primeira é de ordem cívica: João Ninguém decidiu, com sua morte, reduzir as despesas nacionais e assim colaborar generosamente para o pagamento de nossa dívida externa e de nossa dívida pública. A segunda razão de sua conduta é de natureza mais literária ou estética: apesar de sua modesta origem, ele entreviu que poderia cooperar para manter viva a tradição da tragédia grega e, assim, ofereceu o seu pequeno drama pessoal para o aumento desse importante acervo da cultura humana; e o seu gesto aí ficará de forma imorredoura para inspiração de quem quiser aproveitá-lo na música, na ficção, na poesia, no teatro ou no cinema. Finalmente, a terceira das razões, em que João se fundou para agir daquele modo, situa-se mais propriamente no plano religioso: com seu humilde sacrifício, ele deliberou refazer a crucifixão do Deus dos cristãos, como se quisesse fornecer uma ousada resposta à indagação do apóstolo Paulo ‑ «Morte, onde está tua vitória?» E que João Ninguém não se inquiete, pois o seu exemplo certamente crescerá e dará bons frutos: outros muitos cidadãos sem-nome também haverão de crucificar suas pobres existências para gáudio de uns poucos.
Contudo, não pretendo concluir este esboço de reflexão, sem antes fazer um apelo e uma sugestão, a fim de evitar que o meu esforço se dilua num simples comentário sem conseqüências práticas. Assim, já que as instituições públicas, especificamente criadas para tal, não asseguram os direitos elementares do cidadão comum, gostaria de solicitar às autoridades sanitárias e à Sociedade Protetora dos Animais que nos protejam daqueles programas que atentam contra a existência normal dos humanos viventes. E, se de todo isso não for levado em conta, uma vez que tudo se transmuda em espetáculo e mercadoria nesta sociedade consumista, sugiro que a TV Cidade venda, alugue ou ceda o videoteipe desse frágil gesto de João Ninguém para o programa do FANTASTICO. Isso tornaria mais democrático «o admirável show da vida!»
FORTALEZA, 14 de Maio de 2001.
O autor é Doutor em Sociologia pela Université François Rabelais, de Tours (França), Pós-doutor em História antropológica pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris), membro do Instituto Histórico do Ceará, da Academia Cearense de Letras e membro titular da Association Internationale des Sociologues de Langue Française (AISLF). Professor Titular de Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Pesquisador 1–A do CNPq. Autor de Contrapontos – ensaios de crítica, São Paulo: AnaBlume, 1998, etc.
Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes
Rua Tomás Acioly, 1505 (Dionísio Torres)
60135-180 Fortaleza, CE.
E-mail: ediatahy@secrel.com.br
[1] Num lampejo de lucidez, “João Ninguém” revelou, com seu ato extremo, de nossa sociedade toda a hediondez. Na época do suicídio desse cidadão “anônimo”, em 1985, achei conveniente, talvez por solidariedade, assinar o texto que elaborei logo de sua ocorrência com o nome fictício de Zé Brasilino. Assim, mais do que o uso de um pseudônimo, esse meu gesto constituía oferecer uma identificação coletiva para os milhões de subcidadãos aqui representados de um lado e de outro – protagonista e espectadores – desse cenário de dor e opróbrio.
[2].”Mão Branca” era o apelido que se atribuía um repórter policial que à época apresentava seu programa hediondo e de evidente mau gosto, nas noites de sexta-feira, num dos canais de TV de Fortaleza, com uma irritante voz de taquara rachada e de cuja figura só a mão aparecia portando uma luva branca. Mesmo assim gozava de ampla audiência popular, como aliás ocorre com esse gênero de programação em qualquer parte do País.
[3] Paris: Félix Alcan, 1930-1931.
[4] Col. «Studium». Lisboa: Livraria Acadêmica / São Paulo: Saraiva & Cia., 1946.
[5] Camões exprime idéia semelhante num verso magnífico de Os Lusíadas: «O saber de experiência feito.»
[6] Cf.: Dicionário de Termos Literários, 2ª ed. revista. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 177.
[7] Jacob Lévy Moreno (Bucareste, 1896 – Beacon, N.Y., 1974). Na verdade, Moreno nasceu numa embarcação sobre o Danúbio, porém foi registrado em Bucareste. Estudou medicina em Viena, onde, em 1921, criou e fez funcionar durante alguns anos o Stegreiftheater (Teatro de Improviso), no qual tanto os atores quanto o público tinham o direito de expressar-se: esse campo de observação lhe forneceu a noção de desrecalque pulsional, elemento fundamental de suas reflexões sobre o psicodrama, que amplia a idéia aristotélica de catarse. Relata ele que foi ao observar atentamente as brincadeiras infantis nos parques de Viena que lhe nasceu a concepção da sociometria, estudo que sistematizou depois, sobre as afinidades e rejeições que intervêm no seio dos grupos humanos. Em 1925, Moreno emigrou para os EE. UU., instalando-se em Beacon, às margens do Hudson, até sua morte em 1974. Além de ter introduzido as técnicas dramáticas na psicoterapia, em especial a de grupo, é em 1934 que publica Who Shall Survive? [2ª ed., Beacon House, N.Y., 1953], sua obra mais importante: foi nela que, além de sistematizar suas concepções sociométricas, estabelece uma analogia entre a curva da mais valia na sociedade capitalista e a curva das escolhas e rejeições afetivas no seio da mesma sociedade, e é aí também que reflete sobre o «proletariado afetivo» mais amplo do que o econômico, visto que atravessa toda a estrutura de classes, etc.
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