domingo, 14 de junho de 2009

Vida, sentido e não-sentido - seria trágico se não fosse cômico

Márcio Acserald*


Para abordar o problema do sentido da vida iremos tratar de um filme cujo título parece convidativo no que se refere a respostas: “The Meaning of Life” (1983). As perspectivas de uma resposta lógica, racional e sensata se dissipam quando descobrimos que os responsáveis pelo filme são os membros do grupo inglês Monty Python, conhecidos justamente pela falta de sentido que costumam atribuir a tudo o que fazem. Esperar que daí surja uma resposta digna para tão nobre questão seria o mesmo que esperar os irmãos Marx se comportassem durante uma recepção de gala. O que devemos encontrar no filme, portanto, são antes exemplos da total falta de sentido da vida. Vejamos.

O título original em inglês de “The Meaning of Life” nos coloca diante de um primeiro problema. Como traduzir a palavra inglesa “meaning” por “sentido” ou por “significado”? Seria o sentido da vida o mesmo que o significado da vida[1]? Se a língua inglesa não é de grande auxílio na compreensão desta diferença, em português podemos encontrar certas peculiaridades inerentes a cada um destes termos. O sentido, segundo aponta Muniz Sodré é “filosoficamente entendido como a condição necessária à existência de significações ou conceitos veiculados pelos discursos atuantes na organização social”[2]. O sentido é pois aquilo que possibilita que o significado (ou significados) se dê(em). É ao mesmo tempo a condição de possibilidade de algo e seu limite último. Um sentido não é um significado, uma correlação ponto a ponto entre representações, não é uma relação de igualdade, mas sim um vetor, um apontar, uma possibilidade sempre renovada de significar. O sentido é inesgotável enquanto o significado esgota-se a si mesmo.

“The Meaning of Life”, portanto, não poderia ser traduzido por “O Significado da Vida”, pois assim estaria implícito que a vida tem um significado e não um sentido, que ela é um problema e não uma questão. Se a busca por um significado único para a vida parece infrutífera, para a busca de seu sentido, no entanto, talvez haja um caminho a ser traçado.

O filme do Monty Python caracteriza-se, como o conjunto da obra do grupo inglês, pela aparente falta de sentido. Em outros de seus filmes, assim como no programa que por vários anos apresentaram na TV inglesa, o “Monty Python’s Flying Circus”, a característica principal é a de um humor baseado no non-sense. A associação entre humor e não-sentido não é gratuita, serve para mostrar que o sentido não é apenas algo já dado previamente, mas uma experiência dinâmica de transformação em que o absurdo pode, de súbito, ganhar, sentido, isto é, promover um sentido novo.

Este sentido único adotado pelo bom senso vai do mais diferenciado ao mais indiferenciado, do notável ao ordinário, do singular ao particular. Tende, portanto, à organização e à entropia. É o bom senso que orienta a seta do tempo, cria a cronologia, permitindo que haja previsibilidade e, portanto, ciência. Já o paradoxo é essencialmente neguentrópico. Está do lado da desorganização, da criação, da imprevisibilidade; campo do acaso, da vida e do humor. O bom senso ocupa o lugar da significação, mas é ao paradoxo que cabe a doação de sentido. A potência do paradoxo não é seguir a outra direção, mas mostrar que o sentido toma sempre as duas direções ao mesmo tempo, que não é interessante separar duas tendências, uma apropriada ao pensamento dito sério e outra destinada ao lúdico, recreativo e humorístico. Todo sentido é, pois, um duplo sentido.

“The Meaning of Life” não é muito diferente dos demais produtos da fértil imaginação destas crianças super crescidas. Aqui, no entanto, se explicita a visão de mundo que permeia toda a obra, a começar pela intenção do título, equívoca, ambígua, paradoxal. Quem procurar no filme uma resposta para a mais antiga e crucial das questões, aquela que por séculos afligiu e continua a afligir a humanidade… irá encontrá-la. E, no entanto, é impossível que não se decepcione.

Na cena de abertura se coloca como tarefa responder de uma vez por todas a principal questão que o homem já se colocou[3]. E, no entanto, o que vemos desfilar na tela durante as quase duas horas de projeção são cenas bizarras em que se ironiza todas as tentivas de resposta até hoje produzidas. Todas as instituições têm a sua vez: da religião à ciência, da escola ao capital. Cada um a seu tempo, todas são apresentadas como respostas parciais e inadequadas, deixando claro que na disputa pelo lugar da verdade, todas perdem. Eis que finalmente, quando já se dissipavam nossas esperanças, uma luz aparece que talvez traga a solução. Não por acaso ela vem na forma a um tempo previsível e esdrúxula de uma apresentadora de TV. Este que ainda é o mais poderoso mito dos tempos modernos não poderia ficar de fora na disputa pelo lugar da verdade. Que venha da TV, pois, a tão aguardada resposta para o sentido da vida.

Sentada em um estúdio mal decorado, a apresentadora recebe das mãos da produção um envelope contendo a tão ansiada resposta para a questão: qual o sentido da vida. Ela abre o envelope e, sem muito entusiasmo, revela: “Bem, não é nada especial. Seja gentil com as pessoas, evite comidas gordurosas, leia um bom livro de vez em quando e tente viver em paz e harmonia com pessoas de todos os credos e nações”. Sobem os créditos e é o fim do filme.

Mas será? Se refletirmos um pouco, veremos que a mensagem não está completa. Não que este não seja verdadeiramente o sentido da vida. O é, certamente. Mas não é o único. Vários sentidos podem se dar para o mesmo termo “vida”, múltiplas respostas para a mesma questão. Afinal de contas, a vida ela mesma é unidade e multiplicidade ao mesmo tempo, portanto complexidade. Nenhuma única resposta seria capaz de descrevê-la sem reduzir esta complexidade a um ponto de vista.

Se voltarmos a fita e procurarmos no meio do filme, no entanto, talvez encontremos um outro tipo de resposta. Não se trata tampouco de uma resposta definitiva, o que pode também frustrar os mais deterministas, interessados em universais e necessários. Esta não se propõe a ser a resposta última mas antes uma resposta primeira. Como tudo o mais que acontece no universo do Monty Python, aqui é de dentro de uma situação kafkiana e absurda que o sentido, como fagulha, aparece.

“Não se esqueça que você vive em um planeta que evolui
enquanto gira a quilômetros por hora
orbitando veloz e incessantemente
um sol que a qualquer momento pode ir embora
O sol você e eu e todas as estrelas que podemos ver
percorrem milhas e milhas todo dia
em uma parte remota de uma galáxia espiralada
que não é láctea e nem tampouco é uma via

[Ele para momentaneamente de cantar. A música continua. Os dois prosseguem seu passeio sideral enquanto a câmera se afasta, passando a focalizar um grupo de estrelas. Estas começam a se mover e passam a compor um plano a partir do qual uma forma se delineia. A princípio indefinida, a forma aos poucos assume os contornos de uma mulher deitada, os cabelos em desalinho, as pernas abertas. Surge um cometa que dá volta ao seu redor. Finalmente o cometa penetra a vagina da mulher. Sua barriga começa a crescer. Ela cresce, cresce, até que de súbito a imagem explode. A câmera volta a encontrar o casal e o homem de terno rosa recomeça a cantar]

Nossa galáxia, uma das menores, contém 100 bilhões de estrelas
para as quais nem sabemos se há planos
o lugar que ocupamos é meramente casual
e tudo muda a cada 200 milhões de anos
O universo, por sua vez, está sempre se expandindo
a milhões de quilômetros por minuto
por isso afirmamos sem ter medo de errar
que o repouso não é seu atributo
Então quando você se sentir insegura lembre bem
que um dia tudo vai virar fumaça
e torça para haver vida inteligente no espaço
porque na terra ela é pra lá de escassa!

[O cantor volta para dentro da geladeira e a porta se fecha]
Senhora Bloke: Faz você se sentir um bocado insignificante, não é?
Primeiro Homem: É, é… E então, podemos ter o seu fígado?
Senhora Bloke: Está bem, você me convenceu.”

Do mesmo modo que na vida ela mesma, no filme também é do meio do caos que o sentido provém, não por uma qualquer organização, uma simplificação que possibilite que compreendamos o que está passando. É o não-sentido ele mesmo que possibilita uma vez mais a gênese do sentido. Agenciando música e humor, dois ingredientes fundamentais para uma vida “sadia”, o Monty Python aproveita para de quebra deixar uma mensagem extremamente simples: o sentido da vida (nos diz a imagem da mulher sendo fecundada) é a própria vida, a ordem que surge em meio ao caos, o sentido que se dá em meio ao absurdo do não-sentido. O sentido aqui equivale ao mistério: porque há vida? Porque tamanha gratuidade, tamanho acaso, tamanha generosidade? É a pergunta que nenhuma lógica nem ciência podem responder. É a pergunta que mantém o que há de vital, de trágico, excessivo e paradoxal na vida. É o fato de ela simplesmente se dar.

[1] O dicionário inglês/português Novo Michaelis traduz a palavra “meaning” por “1. significado, sentido”.

[2] SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida, p.44.

[3] A canção de abertura diz: “Is life just a game where we make up the rules/While we’re searching for something to say/Or are we just simple spiraling coils/Of self-replicating DNA?/What is life? What is our fate?/Is there heaven and hell? Do we reincarnate?/Is mankind evolving or is it too late?/Well tonight here’s the Meaning of Life”. (A vida é apenas um jogo onde nós fazemos as regras?/Enquanto nós procuramos por alguma coisa para dizer?/ Ou nós somos simplesmente rolos espirais/De um DNA auto-replicador?/O quê é a vida? O quê é nosso destino?/Há paraíso e inferno? Nós reencarnamos?/Está a humanidade evoluindo ou já é tarde demais?/ Bem esta noite apresentamos o Sentido da Vida”)
>.

* Márcio Acserald é Graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1990), Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997) e Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Atualmente é professor adjunto da Universidade de Fortaleza e professor horista da Faculdade 7 de Setembro.

sábado, 6 de junho de 2009

O Homem diante da Morte

Ubiracy de Souza Braga*
“Os mortos tolhem os vivos”.
Auguste Comte

Lamentavelmente a 5ª economia do país, da floricultura à indústria naval, o estado do Ceará, caminha na contramão da história em termos políticos de garantia e manutenção dos direitos civis. Da prostituição infantil, chamada pelo poder público e pela grande imprensa de “turismo sexual” à formação de grupos de extermínio, o que vemos nesses dias noticiadas flagrantemente nas páginas dos jornais são cenas de desrespeito aos mortos e suas famílias, praticadas por um governo que se diz democrático e socialista. O flagrante aconteceu exatamente ao meio-dia, quando um “rabecão”, carro de transporte de cadáveres, do Instituto Médico Legal (IML), propositadamente sem placa de identificação e totalmente descaracterizado, parou em uma rua estreita, junto a um matagal ao lado do Cemitério Bom Jardim, na zona sul de Fortaleza.

São cenas macabras e estarrecedoras, como se fosse um pesadelo bergmaniano, ou, conhecidas vulgarmente pelos grupos de extermínio, post festum como “desova”, em diversas regiões do país, mas com o agravante de que ali já estavam funcionários de uma empresa “terceirizada” que trabalham profissionalmente como coveiros. De forma rápida e sorrateira, os funcionários do IML abriram as portas do “rabecão” e puxavam os gavetões onde havia corpos inteiros e “pedaços humanos”, como vemos nos seguintes depoimentos: “Já vi o rabecão jogando os corpos nas valas. É uma cena que deixa a gente com raiva e muito comovido” (depoimento de Wellington Teixeira, 50 anos, Feirante). Ou, “Já vimos pedaços de gente sendo levados pela correnteza. Com as últimas chuvas, muitas covas se abriram” (depoimento de Maria Barbosa, 48 anos, Dona-de-casa).

Mutatis mutandis o conservadorismo, em certo sentido, surgiu do tradicionalismo: de fato, ele é primordialmente nada mais do que o tradicionalismo tornado consciente. Apesar disso, os dois não são sinônimos, na medida em que o tradicionalismo só assume seus traços especificamente conservadores, enquanto expressão de um modo de vida e pensamento, como um movimento relativamente autônomo no processo social. Uma das características mais essenciais desse modo de vida e desse pensamento conservador parece ser a forma como ele se apega ao imediato, o real, o concreto. Augusto Comte, por exemplo, em seu Système de Politique Positive (1828), afirmava que “a sã política não deveria ter por objeto fazer avançar a espécie humana, que se mova por impulso próprio, seguindo uma lei tão necessária quanto a da gravidade, embora mais modificável; ela tem por finalidade facilitar sua marcha, iluminando-a”. O conservador somente pensa em termos dos “sistemas como reação”, quando é forçado a desenvolver um sistema próprio para contrapor ao dos progressistas ou quando a marcha dos acontecimentos, o priva de qualquer influência sobre o presente imediato, de tal forma que ele seria obrigado a “girar a roda da história para trás” a fim de reconquistar a sua influência ao nível ideológico ou político propriamente dito.

Sua natureza peculiar pode ser mais claramente percebida no seu conceito de propriedade de forma anteriormente diversa da propriedade de hoje. Aquele sentido genuíno trazia consigo certos privilégios para seu dono – por exemplo; dava-lhe vez nas questões de Estado, o direito de caçar, de se tornar membro de júri. Dessa forma a propriedade estava estreitamente ligada à honra pessoal e ao prestígio, como bem analisou Max Weber com seus “tipos puros de dominação legítima” e, portanto, era em certo sentido inalienável. Assim, existia uma relação completamente intransferível e recíproca entre uma propriedade em particular e um dono em particular. O conceito de “tipo ideal” se situa no ponto de convergência de várias tendências do pensamento weberiano. Ele está ligado à noção de compreensão, pois todo tipo ideal é uma organização de relações inteligíveis próprias a um “conjunto histórico” ou a uma “seqüência de acontecimentos”. Por outro lado, o tipo ideal está associado ao que é característico da sociedade e da ciência moderna, a saber, o processo de racionalização, tão bem desenvolvido pela haerentia da Escola de Frankfurt a partir da concepção de Jürgen Habermas. E, de fato, Habermas tem como escopo de sua análise os chamados “países capitalistas avançados” que desde o último quartel do século XIX apresentam duas tendências evolutivas: 1) um incremento da atividade intervencionista do Estado, que deve assegurar a estabilidade do sistema e, 2) uma crescente interdependência de investigação técnica, que transformou as ciências na primeira força produtiva. Ambas as tendências destroem aquela constelação de marco institucional e subsistemas de ação racional dirigida a fins, pela qual se caracteriza o capitalismo de tipo liberal. Por isso mesmo, é que não se cumprem, assim, condições relevantes de aplicação para a economia política na versão que Marx, com razão, lhe dera relativamente ao capitalismo liberal, ou seja, já não pode também desenvolver-se uma teoria crítica da sociedade na “forma exclusiva de uma crítica da economia política”.

Na medida em que a atividade estatal visa à estabilidade e o crescimento do sistema econômico, a política assume um peculiar caráter negativo: orienta-se para prevenção das disfuncionalidades e para o evitamento dos riscos que possam ameaçar o sistema; portanto, a política visa não a realização de fins práticos, mas a resolução de questões técnicas. Portanto, a solução de tarefas técnicas não está referida à discussão pública. As discussões públicas poderiam antes problematizar as condições marginais do sistema, dentro dos quais as tarefas da atividade estatal se apresentam como técnicas. A nova política do intervencionismo estatal exige, por isso, uma despolitização da “massa da população”. Por outro lado, o marco institucional da sociedade continua separado dos sistemas de ação racional dirigida a fins. A sua organização continua a ser uma questão de práxis ligada à comunicação e não apenas da técnica, ainda que sempre de cunho científico.

Deste modo, sem dúvida, os interesses continuam a determinar a direção, as funções e a velocidade do progresso técnico. Mas tais interesses definem de tal modo o sistema social como um todo, que coincidem com o interesse pela manutenção do sistema. A forma privada da valorização do capital e a chave de distribuição das compensações sociais, que garantem a lealdade da população, permanecem como tais subtraídas à discussão. Como variável independente, aparece então um progresso quase autônomo da ciência e da técnica, do qual depende de fato a outra variável mais importante do sistema, a saber, o crescimento econômico. Cria-se assim uma perspectiva na qual a evolução do sistema social parece estar determinada pela lógica do progresso técnico-científico.

A legalidade imanente de tal progresso parece produzir as coações materiais pelas quais se deve pautar uma política que se submete às necessidades funcionais. E quando esta aparência se impôs com eficácia, então, referência propagandista ao papel da técnica e da ciência pode explicar e legitimar porque é que, nas sociedades modernas, uma formação “democrática da vontade política” perdeu as suas funções em relação às questões políticas e “deve” ser substituída por decisões plebiscitárias acerca de equipes alternativas de administradores. Daí que o conceito abstrato de propriedade da burguesia suprimiu a antiga concretização do conhecimento. Portanto, a abstração das relações humanas sob o capitalismo, que é constantemente enfatizada por Marx, e é claro depois dele, certamente por Émile Durkheim, quando afirma “o nosso método não tem, portanto, nada de revolucionário. É até, num certo sentido, essencialmente conservador, uma vez que considera os fatos sociais como coisas cuja natureza, por mais elástica e maleável que seja não é, no entanto, modificável à nossa vontade”, quer dizer, foi originalmente uma descoberta dos observadores do campo conservador por que são reativos.

O fundamental é que essa insistência sobre o “concreto”, ou antiga concretização do conhecimento, é um sintoma do fato de que o conservadorismo conhece os processos históricos em termos de relações e situações que existem apenas como “restos do passado”, e do fato de que os impulsos em direção à ação, que brotam dessa maneira de se conhecer a história, são também centradas sobre relações passadas que ainda sobrevivem no presente, daí a idéia comteana de que “os mortos tolhem os vivos”. Ipso facto o pensamento conservador autêntico tem sua relevância e dignidade baseada em algo mais do que mera especulação baseada no fato de que as atitudes vistas desse tipo ainda sobrevivem em vários setores da sociedade, posto que desde Honoré de Balzac, na literatura, e Karl Marx na filosofia política, temos que para o primeiro, “todo dinheiro é sujo por definição”, mas para o segundo hinc et nunc, “todo Estado é corrupto”. Ou, ainda na genealogia sobre o poder em Michel Foucault, para quem “o Estado produz efeitos de poder político”.

E é esse mesmo Foucault que os adverte quanto à definição do trabalho que é preciso realizar sobre si mesmo, uma certa modificação: através dos exercícios de abstinência e de domínio que constituem a askesis necessária, o lugar atribuído ao conhecimento de si torna-se mais importante: a tarefa de se por à prova, de se examinar, de controlar-se numa série de exercícios bem definidos, coloca a questão da verdade – da verdade do que se é, do que se faz e do que se é capaz de fazer – no cerne da constituição do sujeito moral. E finalmente, “o ponto de chegada dessa elaboração é ainda e sempre definido pela soberania do indivíduo sobre si mesmo; mas essa soberania amplia-se numa experiência onde a relação consigo assume a forma, não somente de uma dominação mas de um gozo sem desejo e sem perturbação”.

Ora, finalmente, independentemente das formas políticas ou religiosas contidas nas civilizações, judaica, cristã ou muçulmana, sabemos que enterrar os mortos é um ritual entre o imaginário individual (o sonho), o imaginário coletivo (os mitos, os ritos, os símbolos) e a obra de ficção, necessário de preservação da memória individual e coletiva, ipso facto as ditaduras nazistas, fascistas ou stalinistas a terem ignorado. Antes de ser apenas um ato legal (Estado), o sepultamento constitui um ritual sagrado, etnograficamente falando, como vemos na mitologia cristã, mais do que isso, posto que enterrar o corpo significa garantir a ressurreição. “É um direito sagrado que faz parte da ética humana e religiosa”, afirma o padre Luís Sartorel, diretor do Instituto de Ciências Religiosas (Icre), completando ser um grande desrespeito à dignidade humana a violação deste direito individual e, além disso, afirma, “o ritual fúnebre inclui oração, choro, veneração e luto”. O teólogo considera importante a identificação da pessoa, bem como a localização de parentes pelas autoridades para que tomem conhecimento da morte do parente, last but no least diante da falta de câmaras para a conservação dos corpos dos indigentes, a direção do IML, decidiu manter a política de enterrá-los rapidamente em valas comuns. O desrespeito aos mortos e aos seus familiares, portanto, deverá continuar através da elite política no poder na sociedade alencarina.

De acordo com P. Clastres (1934-1977), membro do Laboratoire d`Anthropologie Sociale do Collège de France (CNRS, Paris), e autor, entre outros, de Chronique des Indiens Guayaki (1972), La Sociétè contre l`Éat. Recherches d`anthropologie politique (1974), Le Grand Parler. Mythes et chants sacrès des Indiens Guarani (1974), Recherches d`anthropologie politique (1980), Myhologie des Indiens Chulupi (1992), mas no ensaio Arqueologia da Violência o autor indaga o seguinte: “O Ocidente seria etnocida porque é etnocêntrico, porque se pensa e se quer a civilização. Uma questão porém se coloca: nossa cultura detém o monopólio do etnocentrismo? A experiência etnológica permite responde a isso. Consideremos a maneira como as sociedades primitivas nomeiam a si mesmas. Percebe-se que, na realidade, não há autodenominação, na medida em que, de modo recorrente, as sociedades se atribuem quase sempre um único e mesmo nome: os Homens.

Ilustrando com alguns exemplos esse traço cultural, lembraremos que os índios Guarani nomeiavam-se Ava, que significa os Homens; que os Guayaki da Venezuela se proclamam. O Yanomani, a “Gente”; que os esquimós são Innuit, “Homens”. Poder-se-ia estender indefinidamente a lista desses nomes próprios que compõem um dicionário em que todas as palavras têm o mesmo sentido: homens. Inversamente, cada sociedade designa sistematicamente seus vizinhos por nomes pejorativos, desdenhosos, injuriosos” (Clastres, 2004:85). Daí o fato cultural que reitera o etnocentrismo quando afirma-se que:

Toda cultura opera assim uma divisão entre ela mesma, que se afirma como representação por excelência do humano, e os outros, que participam da humanidade apenas em grau menor. O discurso que as sociedades primitivas fazem sobre si mesmas, discurso condensado nos nomes que elas se dão, é portanto etnocêntrico de uma ponta á outra: afirmação da superioridade de sua existência cultural, recusa de reconhecer os outros como iguais. O etnocentrismo aparece então como a coisa do mundo mais bem distribuída e, desse ponto de vista pelo menos, a cultura do Ocidente não se distingue das outras. Convém mesmo, aprofundando um pouco mais a análise, pensar o etnocentrismo como uma propriedade formal de toda formação cultural, como imanente à própria cultura. Pertence à essência da cultura ser etnocêntrica, na medida exata em que toda cultura se considera como a cultura por excelência. Em outras palavras, a alteridade cultural nunca é apreendida como diferença positiva, mas sempre como inferioridade segundo um eixo hierárquico” (Clastres, 2004:85-86).

Desta forma é aceito que o etnocídio é a supressão das diferenças culturais julgadas “inferiores e más”; é a aplicação de um princípio de identificação, de um projeto de redução do outro ao mesmo, como ocorre, por exemplo, com o índio amazônico suprimido como outro e reduzido ao mesmo tempo como cidadão brasileiro. Em outras palavras, o etnocídio resulta na dissolução do múliplo no Um. Mas para o que nos interessa o que significa agora o Estado? Ele é, por essência, o emprego de uma força centrípeta que tende, quando as circunstâncias o exigem, a esmagar as forças centrífugas inversas. O Estado se quer e se proclama o centro da sociedade, o todo do corpo social, o mestre absoluto dos diversos órgãos desse corpo. Descobre-se assim, no núcleo mesmo dessa substância do Estado, a força atuante do Um, a vocação de recusa do múltiplo, o temor e o horror da diferença. Nesse nível formal em que nos situamos atualmente, afirma P. Clastres, “constata-se que a prática etnocida e a máquina estatal funcionam da mesma maneira e produzem os mesmos efeitos: sob as espécies da civilização ocidental ou do Estado, revelam-se sempre a vontade de redução da diferença e da alteridade, o sentido e o gosto do idêntico e do Um”. Estejamos atentos!

* Sociólogo, Cientista Político, Comunicólogo. Professor da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (uece).