sexta-feira, 9 de maio de 2008

GALATÉIAS DE PIGMALIÕES INSEGUROS

Conversávamos noutro dia desses sobre a declaração de uma amiga, eu e outro amigo que também a conhecia bem. Ela manifestava num momento de desabafo seu desejo e atração física por alguém, afirmando querer transar com o cara sem nenhum tipo de envolvimento afetivo pelo mesmo, apenas uma noite de puro sexo. Meu amigo de pronto ficou em choque e numa argumentação no mínimo suspeita discursava sua visão sobre aquilo que acreditava ser a verdadeira essência feminina:

- Este tipo de coisa não é o papel da mulher, pois assim estaria se igualando ao homem. Mulher é o típico sexo frágil, portanto, mais sensível, carinhosa, meiga. Nenhum comportamento semelhante pode ser bem visto por nós homens. Pois este tipo de coisa descaracteriza e contradiz a essência da mulher. Sexo sem afeto é coisa de homem.

Assim, no calor do diálogo percebi que o seu discurso era comum em nossa sociedade. Ele me fez lembrar da lenda romana contada por Ovídio em sua peça “Metamorfose”.

Reza a lenda que um brilhante escultor solitário da Ilha de Chipre, Pigmalião, era assediado pelas mais belas mulheres do lugarejo em que vivia. Certa ocasião, Pigmalião recebe a visita da deusa Afrodite em sonho. Provocada pelos pedidos das mulheres do lugar, Afrodite aparece ao artísta para tentar fazer com que se casasse com alguma delas. Ao acordar inspirado pela beleza da deusa, Pigmalião faz (Galatéia), a mais bela estátua esculpida. Sua obra de arte agora torna-se o objeto de sua paixão. Quando Afrodite retorna para cobrar alguma decisão por parte do artista, ele pede a deusa que faça com que a escultura seja sua esposa. O pedido é atendido, e Pigmalião beija a estátua que prontamente se transforma numa linda mulher de carne e osso. E ambos se amaram para o resto das suas vidas.

O que há de comum entre a lenda de Pigmalião e a convicção do meu amigo sobre a natureza da mulher?

A resposta está no fato de que nós homens sofremos do mal de Pigmalião, inventamos nossas próprias mulheres. Elas são frutos dos nossos devaneios e sonhos machistas. Assim acontece também nos rincões da religião, nosso ocidente machista perpetua a invenção da mulher pelo mito bíblico do gênesis. Esta então seria tirada solidariamente da costela de um solteirão para em seguida enganá-lo e assim parir o pecado.

Ora, sabemos por Flávio Josefo que na sociedade judaica ainda do I sec. d.C. a mulher era por lei considerada inferior ao homem em todas as coisas, pois fora a ele que “Deus” teria entregado o poder. Nos textos religiosos a mulher estava na mesma categoria das crianças, dos surdos, dos cegos, dos deficientes mentais, e dos escravos pagãos. Até filosofia clássica revelou-se misógena, quando pela boca de Aristóteles proclama a mulher como um “Macho deformado” e portanto inferior intelectualmente ao homem.

No “Banquete” de Platão, diálogo que trata do amor, o mais belo discurso é feito por Diotimia que, sendo mulher, reproduzia na íntegra a mensagem divina acerca do amor. Do mesmo modo “as Pitonisas” incapazes de pensar por si mesmas, constituem o canal seguro do escoamento do pensar dos deuses. O fato é que, a misogenia grega e o preconceito judaico prefaciaram as relações de poder no seio da Igreja. Assim, Tertuliano, já nos primeiros séculos do cristianismo acusava as mulheres: “A sentença de Deus é sobre vosso sexo; e seu castigo pesa ainda mais sobre vós. Vós sois a porta do demônio”.

Também sob a pena da fogueira na Idade Média durante quatro séculos, inquisidores com a ameaça de caça às bruxas ensinavam às mulheres como deveriam se comportar: dóceis, recatadas, limitadas ao afazeres domésticos. Somente ao homem era permitida ambição profissional. O medo de ser queimada viva se fez tanto no inconsciente coletivo que a mulher foi inventada e criada num cuidado extremo. Educadas por nossos pais e avós afim de serem aceitas pela sociedade sob as bandeiras do recato.

Obviamente como homem sou também responsável pela invenção de certo padrão de mulher. Confesso, a ideia de uma Dulcinéia de Taboso povoa e muito meu imaginário Quixotesco. No entanto, vemos através de Nietzsche a Habermas que os valores passados por nossa tradição não são eternos. E que portanto, não foi Deus, Alá, Jesus, ou Buda que fez os céus se abrirem descortinando padrões sociais que hoje moldam nosso comportamento. Eles diziam que nosso conhecimento da realidade é condicionado pelo “interesse”, ou seja, a estruturação dos valores a serem vividos pela sociedade está intrisecamente ligada aos anseios do grupo dominante.

Então é importante sabermos que é a sociedade “machista” que limita os espaços da mulher, e por conseqüência não permite a emergência da figura feminina no pensar e no protagonismo de sua ação na construção do mundo.

Mas, se esta sociedade patriarcal arbitrariamente atribui valores e aptidões a ambos os sexos, cabe aqui a relevância da preocupação do meu amigo, e a sua infeliz e desesperada tentativa de classificar a mulher; O que faz da mulher mulher? Qual a competência de sua feminilidade?

Por séculos escritores seguiram inventando as mulheres. No papel, as letras redesenhavam o imaginário que povoaria as mentes de todos nós, leitores e leitoras. As mulheres foram o que eles diziam que eram. As mais variadas nuances da literatura não me deixa mentir:

José de alencar por exemplo, moldou a mulher com diversos rostos, mostrando sempre a represália que sofriam a desobedecerem os padrões estabelecidos; É o caso da personagem Lúcia em Lucíola ou Iracema. Em Machado de Assis surgiu a mulher dissimulada, sedutora, sonsa... Desde Helena e seus segredos, passando por D. Severina e seus braços até a polêmica Capitú. Rubem Braga menos doutrinário constrói a imagem de seus próprios sonhos de Prazer, bela imagem; Quando, na crônica “Não mais aflitos” fala do prazer de contemplar uma mulher sem estar apaixonado.

Também “As Brumas de Avalon”, livro que virou filme, vemos o imperialismo da cultura cristã católica medieval extinguindo a religião dos (druídas), substituindo a entidade sagrada e fértil da deusa pela figura da casta Virgem Maria. A religião dos druídas foi satanizada porque no fundo enfocava aspectos de uma espiritualidade marcadamente feminista (aqui não se deve tomar a palavra pelo termo moderno). Não existia um Deus, mas a deusa (natureza), não existia sacerdotes, mas sacerdotisas. Quem orientava a mística daquela sociedade eram as mulheres, temidas, e portanto, respeitadas não pelo poder que tinham, mas pelo que representavam: O talento criativo e a fertilidade como algo intrínseco à natureza feminina.

As sacerdotisas de Avalon expunham o que todas as mulheres manifestam, a criação ligada à vivência de uma “alma selvagem” que assusta os homens e aos padrões de comportamento impostos. Esse talento feminino é limitado pelo freio social, e quase sempre, estabelecidos por homens inseguros diante de um potencial criador inato ou talento artístico capaz de brilhar. Nas palavras de Simone de Beauvoir vemos a mulher assumir o modelo feminino imposto pela sociedade: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” “Eu sou aquilo que consegui fazer a partir do que me fizeram”.

Percebemos, nossa visão da realidade feminina foi de tal maneira distorcida que é impossível transcender a meras posições culturais e preconceituosas impressas ao longo da história. Tendo em vista que tudo quanto conhecemos sobre o ser mulher foram aspectos desenvolvidos em detrimento do domínio histórico-social sofrido a milênios. Pois na medida que é inferiorizada, ela passa a crer na própria inferioridade e a perpetuá-la à filhos e filhas enquanto mãe-educadora.

Por isso, acredito que até para a própria mulher foi negado o direito de conhecer-se completamente, já que a mesma sempre foi vista à sombra masculina. Portanto, nós, homens e mulheres devemos admitir nossa total ignorância em relação à competência da alma feminina. Talvez seja por isso que a praticidade masculina aliada à sua ignorância faça com que inventemos nossas mulheres, seja por letras poéticas e misógenas, seja por atitudes e argumentos preconceituosos insuflados por medo de que sua criatividade revele a inferioridade masculina.

Nossa esperança é transcendamos à meros estereótipos míticos, e que no futuro homem e mulher sejam uma só voz a decidir os destinos do Universo. Pois na visão belíssima de Theilhard Chardin, a história evolui no sentido de uma cristificação universal, onde a plenitude do amor esgota as diferenças.

Sem estátuas e sem costelas!

Wellington Araújo
Estudante de Teologia