domingo, 26 de abril de 2009

Ajustando o Foco das Lentes: O martírio de Tiradentes

Ubiracy de Souza Braga[i]

Escrever não é certamente impor uma forma de escrita a uma matéria vivida, mas toda forma de escrita representa em si um estilo literário. É discussão longa, decerto, passagem de vida que atravessa o visível e o vivido, é um devir, embora inacabado, em vias de fazer-se, segundo portas, limiares e zonas que compõem o universo inteiro. Ipso facto, um homem sem-vergonha não traz sentido ao escrever, mas inversamente, se concordarmos com a indagação: “a vergonha de ser um homem, haverá razão melhor para escrever?”.
Para o historiador José Honório Rodrigues (1970), Varnhagen é um mestre da história geral do Brasil por várias razões. Metodologicamente falando, vale lembrar, por que como historiador, todos os seus contemporâneos, desde 1878 – data de sua morte e do elogio do escritor cearense Capistrano de Abreu – até os dias de hoje é um historiador incomparável pela vastidão das pesquisas que realizou e dos fatos que revelou; incomparável pela publicação de inéditos que promoveu; incomparável pela perseverança com que caminhou pelos caminhos da história brasileira, até então nunca palmilhados; incomparável pela obra preliminar que antecede sua História do Brasil; incomparável por esta mesma História Geral, que desconhecia antecessores nacionais; incomparável, ainda, pela própria obra complementar que supre lacunas e amplia o horizonte do conhecimento; incomparável, finalmente, porque a obra parcial, como a História dos Holandeses no Brasil ou a História da Independência, representa, na sua época, um novo avanço historiográfico e uma nova aquisição da consciência nacional.
Realmente, a História geral do Brasil contém como revelação de fatos mais do que se pode esperar o leitor desavisado. O que é desastroso, para alguns críticos, mesmos nos dias de hoje, diz respeito ao fato de que, “a distribuição da matéria não obedece a critérios rigorosos; segue mais a cronologia que a temática; a intitulação dos capítulos é inexpressiva, pois mais esconde que revela as novidades que contêm”. Porque é mais cronológica que temática, na concepção geral, é também expressão de um processo construtivo mais estático que dinâmico. Quando repete o mesmo tema – os progressos do Brasil, por exemplo, nos séculos XVI, XVII e XVIII – inspirado, creio eu, no historiador inglês Robert Southey, que assim o fizera, a dinâmica do processo histórico se caracteriza, tendo em vista que “o grande tema é a obra da colonização portuguesa no Brasil”.
Para concordarmos com a análise de Rodrigues, leitor de Varnhagen entendemos que, “em toda a obra, queira ou não Varnhagen, o sentido da História do Brasil se revela na luta até o extermínio dos índios, na submissão dos escravos negros, nas rebeliões, nas insurreições, no terror oficial da política portuguesa, na insegurança de todos, especialmente da maioria, na força dos Potentados, nas grandes fomes e grandes epidemias [que surgiram com a presença dos invasores portugueses etc.], nas fraquezas da justiça, enfim, no solo encharcado de sangue”.
O longo e sinuoso caminho colonial da História do Brasil não foi escondido por Varnhagen, pois quem ler integralmente a História geral do Brasil verá que nela não se foge à verdade de que no Brasil o grande problema foi sempre garantir e assegurar a maioria contra os abusos e os excessos da minoria: perseguições políticas e religiosas, discriminações raciais, censura, absolutismo, falta de ensino, de imprensa, somam-se aos excessos dos castigos exemplares dados às maiorias conservadas sempre em estado de “minoridade política e civil”. Abusos das autoridades, lutas entre governadores e magistrados, a corrupção e relaxação das minorias dirigentes – os governos longos, de trinta, de vinte e cinco, de quinze anos não são exceção – dão ipso facto à História geral do Brasil, escrita, como é sabido por um conservador, um sentido revelador. Ou seja, não é surpresa que um homem tão solidamente fortificado na sua ideologia conservadora e na sua política pragmática, que jamais colocou o debate no terreno abstrato e absoluto da Justiça, mas no da convivência e da utilidade, como observou Capistrano de Abreu, deixasse ocultas as fraquezas essenciais do colonialismo.
A opinião de F. A. de Varnhagen não era isolada, mas representativa da política colonial portuguesa dominante, como da época em que escrevia o tenente norte-americano Herdon contou a Handelmann, que um português do Pará lhe dissera, em 1852, que em matéria de reforma dos índios: “o melhor seria enforcá-los a todos” (sic). E de fato, muitas vezes é tal a aversão de Varnhagen às “populações brasileiras mais baixas e modestas”. Ou, melhor dizendo, na expressão de Slavoj Žižek no sentido psicanalítico do termo, “a inveja do gozo do outro”, onde “trechos de sua História se convertem em noticiário de ocorrências policiais” (...). “O que não impede que até as futilidades participem de seu temário (...) o que não é muito estranho à nossa historiografia menos qualificada”.
Faltava-lhe, como observou Capistrano de Abreu, “o espírito compreensivo e simpático, que o tornasse contemporâneo e confidente dos homens e dos acontecimentos”. Com as novas edições ele recua em algumas de suas opiniões como são os casos das análises sobre a Inconfidência Mineira, para o que nos interessa, e a Revolução de 1817 last but no least que sofreram “retoques importantes”. Ou seja, reviu sua (ex)posição nessas rebeldias de “gente qualificada” e não nas outras, nas “dos índios, nas dos negros”, nas da “gente miúda”, mal comparando como a de 1789, cujo movimento lhe faz tremer a pena de indignação. Na 1a edição de sua obra maior chamara Tiradentes de “insignificante”; na 2a edição melhora o tratamento dado a Tiradentes e escreve que “ele se adiantou a aceitar para si a responsabilidade desta nobre tentativa e as glórias do martírio que hoje lhe confere a posteridade” (sic).
Não devemos perder de vista que até o século XVII, com o absolutismo monárquico, o suplício, para lembrarmo-nos do filósofo Michel Foucault, quando tematiza “a ostentação dos suplícios” não desempenhava o papel de reparação moral; tinha, antes, o sentido de uma “cerimônia política”, o que lembra-nos certamente o lugar que ocupou o coliseu, do grego kolossaîon, pelo latim, colossaeu, anfiteatro da antiga Roma, objeto de sadismo como analisou brilhantemente o psicólogo Eric Fromm, mas que não trataremos agora. O delito como tal devia ser considerado como um desafio à soberania do monarca: ele perturbava a ordem de seu poder sobre os indivíduos e as coisas. “O suplício público, longo, terrificante, tinha exatamente a finalidade de reconstituir essa soberania; seu caráter espetacular servia para fazer participar o povo do reconhecimento dessa soberania”.
Mas como que numa figura de recalque, se por um lado F. A. de Varnhagen descreve a corajosa atitude de Joaquim José da Silva Xavier (1748-1792), o Tiradentes no suplício, por outro, continua a chamar de Piedosa aquela Rainha de “execrável memória”. De outra parte, em “Exaltação a Tiradentes”, os compositores Estanislau Silva, Mano Décio da Viola e Penteado, dizem assim homenageando o bravo alferes: “Joaquim José da Silva Xavier/Morreu a vinte e um de abril/Pela Independência do Brasil/Foi traído e não traiu jamais/A Inconfidência de Minas Gerais/Joaquim José da Silva Xavier/Era o nome Tiradentes/Foi sacrificado pela nossa liberdade/Este grande herói/Para sempre há de ser lembrado”. Nesta música, Tiradentes foi interpretado de Cauby Peixoto à la Elis Regina, já que ela foi uma mulher especial em voz e talento.
Ou seja, o que se pode extrair daí é que, a execução de Tiradentes também está inscrita na liturgia do poder que se materializava nas práticas penais do Ancién Regime. Nela a violência sobre o corpo do condenado se exerce depois da morte pela forca e atinge de forma desdobrada o corpo do réu com o corte da cabeça, o esquartejamento e a exposição, e atinge sua família, sua memória. Portanto, condenam o réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, alferes que foi da tropa paga da capitania de Minas, a que com baraço e pregão seja conduzida pelas ruas públicas ao lugar da forca, “e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada à Vila Rica, aonde em o lugar mais público dela será pregada em um poste alto até que o tempo a consuma; o seu corpo será dividido em quatro quartos e pregado em postes pelos caminhos de Minas, o sítio da Varginha e de Sebolas, aonde o réu teve as suas infames práticas”.
Contudo, ao contrário de seus companheiros, também ricos e letrados, Tiradentes, era um homem considerado “do povo”, ou mesmo poderíamos antecipar, etimologicamente falando, a idéia de “populismo”, contida na obra da escritora russa Alexandrovna Tvardoviskaia (1873), se se quer entender a representação social do “popular” como figura do conhecido. Isto porque notadamente seu saber era de experiência, prático, feito em sua vida de tropeiro, que jogou um papel fundamental para o transporte de mercadorias até o século XIX; de minerador, onde nos dias de hoje Carajás demonstra o submundo do trabalho na exploração do minério; de curador de doentes, de dentista afamado e de alferes. Mas, principalmente, para o que nos interessa, de conspirador, como ocorrera em notáveis anarquistas europeus, como o caso de Enrico Malatesta (Itália), em seus Escritos Revolucionários, Mikhail Bakunin (Rússia), Escritos contra Marx, Deus e o Estado e outros tantos reunidos recentemente na coletânea Os Anarquistas julgam Marx, como: Alexandre Skirda, Maurice Joyeux, Rudolf Rocker, Gastoon Leval, Daniel Guérin, Jean Barrué, Michel Ragon, Eric Vilain, para ficarmos nestes exemplos.
Por essas qualidades de humanista e por seu talento político de estadista, ultimamente revelado pelo chamado “revisionismo histórico”, foi ele que se fez “cabeça da conspiração”, impondo seu comando a tantos homens poderosos e letrados da elite política de Ouro Preto. Tiradentes era por todos proclamados como o principal, por seu fervor republicano; por sua confiança nos mazombos brasileiros para criar um país próspero e fazer dele uma grande nação; por sua temeridade para ações subversivas, contra a ordem monárquica vigente e todo o seu aparato de dominação, opressão e velhacaria. A fronda dos mazombos resgata a história esquecida ou escassamente conhecida do que constitui, talvez, o primeiro movimento social brasileiro de contestação ao sistema colonial português. Mutatis mutandis, em Pernambuco, já devastado por um quarto de século de guerra e dominação holandesa, as aspirações autonomistas, num percurso de mais de cinqüenta anos, culminariam na guerra dos Mascates e seriam esmagadas, como é sabido, na repressão desencadeada pela Corte de Lisboa.
Todos tinham certeza de que, unidos, poderiam por as riquezas do Brasil a serviço de seu próprio povo. Queriam criar aqui uma República como a que a América inglesa estava criando no Norte, com autonomia e liberdade, na busca de sua própria felicidade, como ficou bem representado no cinema, com a Guerra Civil americana, quando um tenente vai para o território ainda dominado pelos índios Sioux. Trata-se aqui de um épico intimista, profundamente ecológico, no sentido de Fritjof Capra, Ilya Prigogine, p.ex. e defensor da cultura indígena; mais do que isso porque toca na consciência de um Kevin Costner, nestes dias, através de um projeto pessoal tendo sua estréia como cineasta (cf. Dances With Wolves, EUA, 1990, 180 min.). Aspirações elementares estas, poder-se-ía dizer hoje, se elas não fossem tão atuais e incumpridas. Ou não é verdade que para muita gente é ousado demais pensar no desenvolvimento autônomo do Brasil, na sua reconstrução para servir ao seu próprio povo? Talvez nosso último guardião tenha sido o líder político liberal radical Leonel de Moura Brizola (1922-2004), porque foi “um influente político brasileiro, controverso, carismático, mobilizador”, como é descrito exemplarmente, mais uma vez pelo livro El Caudilllo (cf. Leite Filho, 2008; 544 páginas), lançado na vida pública por Getúlio Dornelles Vargas (1883-1954).
Os conspiradores mineiros inspiravam-se tanto no exemplo norte-americano de construção do pensamento liberal radical, como nas idéias libertárias que corriam o mundo e eclodiriam, simultaneamente, com a Revolução Francesa. Sua fé maior era no direito dos povos a viverem em liberdade, governando-se a si mesmos. Detestavam a tirania colonial portuguesa, como fora analisada pelo historiador Francisco Calazans Falcon no livro Despotismo Esclarecido, ou, em textos menores, como As Práticas do Reformismo Pombalino no Campo Jurídico, ou ainda, em Limites Coloniais do Absolutismo Esclarecido – a Época Pombalina no Brasil, e outros, tendo sua forma brutal e arbitrária de governar e sua ganância sem limites.
Nestas bases, afirma o antropólogo Darcy Ribeiro (1994), é “que se conjurou para planejar uma República brasileira, livre, soberana e próspera”. Ela teria uma bandeira branca, tendo no centro um rublo triângulo, evocativo da santíssima Trindade, e inscrito o lema vigiliano: Libertas quae sera tamen. O hino nacional seria o Canto Genetilíaco de Alvarenga Peixoto, poeta fluminense, que estudou no Colégio dos Jesuítas no Rio de Janeiro, assim como na Universidade de Coimbra, em Portugal, onde conheceu o poeta Basílio da Gama de quem se tornou um grande amigo. Exerceu o cargo de Juiz de Fora da Vila de Sintra em Portugal, bem como o de Senador pela cidade mineira de São João Del-Rei.
Ipso facto Tiradentes tinha certeza de que se podia criar no Brasil uma República melhor e mais próspera que a da América inglesa, porque fôramos mais bem dotados pela natureza, contando com os recursos minerais de imensa riqueza, além de termos cidades mais belas e mais cultas do que as norte-americanas. Destemido e ardente, andava sempre a dizer para quem quisesse ouvir: “Se todos quisermos poderemos fazer deste país uma grande nação” (sic). Também repetia com freqüência: “Ah! que fossem todos do meu ânimo”. O Brasil seria dos brasileiros. Irritado com os covardes, exclamava: “Vosmicê é daqueles que têm medo do bacalhau!” (sic) –, instrumento de tortura utilizado no período colonial. Tudo isso se lê nos Autos da devassa.
Varnhagen não foi só injusto, frio ou obscuro, além de preconceituoso, sem generosidade, sem compreensão para com todos os rebeldes, os inconformados, os perseguidos, especialmente os das “classes mais modestas”, na falta de melhor expressão, como também o fora, na literatura, o brioso escritor e fundador da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis, que no dia 22 de maio de 1892, no jornal A Semana, escreve com ironia sobre o novo herói da República, Tiradentes, que ganhou proeminência só a partir de 1890:
Esse Tiradentes se não tomar cuidado em si acaba inimigo público. Pessoa cujo nome ignoro escreveu essa semana algumas linhas a fim de retificar a opinião sobre o grande mártir da inconfidência (...). Não será possível imaginar que, se não fosse a indiscrição de Tiradentes, que causou o seu suplício e o dos outros, teria realidade o projeto? Daqui a espião da polícia é um passo (...). Mas ainda restará alguma coisa ao alferes; pode-se-lhe expedir a patente de capitão honorário (...). Antes isso que nada (...). O certo, porém, é que o culto a Tiradentes não se iniciou nessa época. Segundo Carvalho, um dos marcos do processo data de 1872, quando foi publicada a obra de Joaquim Norberto de Souza e Silva – História da conjuração mineira -, que teria gerado grande controvérsia. No entanto, foi só após a República que se intensificou o culto cívico a Tiradentes, e apenas em 1890 a personagem virava feriado nacional (...). Além disso, foi também na década de 90 que a figura de Tiradentes, até então pouco retratada, passou a se associar à imagem de Cristo. Décio Vilares distribuiu para o desfile de 1890 uma litografia em que aparecia o busto de Tiradentes, cuja placidez era a própria representação de Jesus Cristo. Em 1892, o mesmo artista voltou a retratar o inconfidente, dessa feita em uma pintura a óleo. Outro artista, ainda – Aurélio de Figueiredo -, terminaria uma nova tela de título significativo: O martírio de Tiradentes. Isso sem falar da representação realista de Pedro Américo, de 1893, que mostra Tiradentes esquartejado sobre o cadafalso” (cf. Jornal A Semana: Rio de Janeiro, 1890).

[i] Sociólogo, Cientista Político. Professor da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (Uece).