Márcio Acserald*
Para abordar o problema do sentido da vida iremos tratar de um filme cujo título parece convidativo no que se refere a respostas: “The Meaning of Life” (1983). As perspectivas de uma resposta lógica, racional e sensata se dissipam quando descobrimos que os responsáveis pelo filme são os membros do grupo inglês Monty Python, conhecidos justamente pela falta de sentido que costumam atribuir a tudo o que fazem. Esperar que daí surja uma resposta digna para tão nobre questão seria o mesmo que esperar os irmãos Marx se comportassem durante uma recepção de gala. O que devemos encontrar no filme, portanto, são antes exemplos da total falta de sentido da vida. Vejamos.
O título original em inglês de “The Meaning of Life” nos coloca diante de um primeiro problema. Como traduzir a palavra inglesa “meaning” por “sentido” ou por “significado”? Seria o sentido da vida o mesmo que o significado da vida[1]? Se a língua inglesa não é de grande auxílio na compreensão desta diferença, em português podemos encontrar certas peculiaridades inerentes a cada um destes termos. O sentido, segundo aponta Muniz Sodré é “filosoficamente entendido como a condição necessária à existência de significações ou conceitos veiculados pelos discursos atuantes na organização social”[2]. O sentido é pois aquilo que possibilita que o significado (ou significados) se dê(em). É ao mesmo tempo a condição de possibilidade de algo e seu limite último. Um sentido não é um significado, uma correlação ponto a ponto entre representações, não é uma relação de igualdade, mas sim um vetor, um apontar, uma possibilidade sempre renovada de significar. O sentido é inesgotável enquanto o significado esgota-se a si mesmo.
“The Meaning of Life”, portanto, não poderia ser traduzido por “O Significado da Vida”, pois assim estaria implícito que a vida tem um significado e não um sentido, que ela é um problema e não uma questão. Se a busca por um significado único para a vida parece infrutífera, para a busca de seu sentido, no entanto, talvez haja um caminho a ser traçado.
O filme do Monty Python caracteriza-se, como o conjunto da obra do grupo inglês, pela aparente falta de sentido. Em outros de seus filmes, assim como no programa que por vários anos apresentaram na TV inglesa, o “Monty Python’s Flying Circus”, a característica principal é a de um humor baseado no non-sense. A associação entre humor e não-sentido não é gratuita, serve para mostrar que o sentido não é apenas algo já dado previamente, mas uma experiência dinâmica de transformação em que o absurdo pode, de súbito, ganhar, sentido, isto é, promover um sentido novo.
Este sentido único adotado pelo bom senso vai do mais diferenciado ao mais indiferenciado, do notável ao ordinário, do singular ao particular. Tende, portanto, à organização e à entropia. É o bom senso que orienta a seta do tempo, cria a cronologia, permitindo que haja previsibilidade e, portanto, ciência. Já o paradoxo é essencialmente neguentrópico. Está do lado da desorganização, da criação, da imprevisibilidade; campo do acaso, da vida e do humor. O bom senso ocupa o lugar da significação, mas é ao paradoxo que cabe a doação de sentido. A potência do paradoxo não é seguir a outra direção, mas mostrar que o sentido toma sempre as duas direções ao mesmo tempo, que não é interessante separar duas tendências, uma apropriada ao pensamento dito sério e outra destinada ao lúdico, recreativo e humorístico. Todo sentido é, pois, um duplo sentido.
“The Meaning of Life” não é muito diferente dos demais produtos da fértil imaginação destas crianças super crescidas. Aqui, no entanto, se explicita a visão de mundo que permeia toda a obra, a começar pela intenção do título, equívoca, ambígua, paradoxal. Quem procurar no filme uma resposta para a mais antiga e crucial das questões, aquela que por séculos afligiu e continua a afligir a humanidade… irá encontrá-la. E, no entanto, é impossível que não se decepcione.
Na cena de abertura se coloca como tarefa responder de uma vez por todas a principal questão que o homem já se colocou[3]. E, no entanto, o que vemos desfilar na tela durante as quase duas horas de projeção são cenas bizarras em que se ironiza todas as tentivas de resposta até hoje produzidas. Todas as instituições têm a sua vez: da religião à ciência, da escola ao capital. Cada um a seu tempo, todas são apresentadas como respostas parciais e inadequadas, deixando claro que na disputa pelo lugar da verdade, todas perdem. Eis que finalmente, quando já se dissipavam nossas esperanças, uma luz aparece que talvez traga a solução. Não por acaso ela vem na forma a um tempo previsível e esdrúxula de uma apresentadora de TV. Este que ainda é o mais poderoso mito dos tempos modernos não poderia ficar de fora na disputa pelo lugar da verdade. Que venha da TV, pois, a tão aguardada resposta para o sentido da vida.
Sentada em um estúdio mal decorado, a apresentadora recebe das mãos da produção um envelope contendo a tão ansiada resposta para a questão: qual o sentido da vida. Ela abre o envelope e, sem muito entusiasmo, revela: “Bem, não é nada especial. Seja gentil com as pessoas, evite comidas gordurosas, leia um bom livro de vez em quando e tente viver em paz e harmonia com pessoas de todos os credos e nações”. Sobem os créditos e é o fim do filme.
Mas será? Se refletirmos um pouco, veremos que a mensagem não está completa. Não que este não seja verdadeiramente o sentido da vida. O é, certamente. Mas não é o único. Vários sentidos podem se dar para o mesmo termo “vida”, múltiplas respostas para a mesma questão. Afinal de contas, a vida ela mesma é unidade e multiplicidade ao mesmo tempo, portanto complexidade. Nenhuma única resposta seria capaz de descrevê-la sem reduzir esta complexidade a um ponto de vista.
Se voltarmos a fita e procurarmos no meio do filme, no entanto, talvez encontremos um outro tipo de resposta. Não se trata tampouco de uma resposta definitiva, o que pode também frustrar os mais deterministas, interessados em universais e necessários. Esta não se propõe a ser a resposta última mas antes uma resposta primeira. Como tudo o mais que acontece no universo do Monty Python, aqui é de dentro de uma situação kafkiana e absurda que o sentido, como fagulha, aparece.
“Não se esqueça que você vive em um planeta que evolui
enquanto gira a quilômetros por hora
orbitando veloz e incessantemente
um sol que a qualquer momento pode ir embora
O sol você e eu e todas as estrelas que podemos ver
percorrem milhas e milhas todo dia
em uma parte remota de uma galáxia espiralada
que não é láctea e nem tampouco é uma via
[Ele para momentaneamente de cantar. A música continua. Os dois prosseguem seu passeio sideral enquanto a câmera se afasta, passando a focalizar um grupo de estrelas. Estas começam a se mover e passam a compor um plano a partir do qual uma forma se delineia. A princípio indefinida, a forma aos poucos assume os contornos de uma mulher deitada, os cabelos em desalinho, as pernas abertas. Surge um cometa que dá volta ao seu redor. Finalmente o cometa penetra a vagina da mulher. Sua barriga começa a crescer. Ela cresce, cresce, até que de súbito a imagem explode. A câmera volta a encontrar o casal e o homem de terno rosa recomeça a cantar]
Nossa galáxia, uma das menores, contém 100 bilhões de estrelas
para as quais nem sabemos se há planos
o lugar que ocupamos é meramente casual
e tudo muda a cada 200 milhões de anos
O universo, por sua vez, está sempre se expandindo
a milhões de quilômetros por minuto
por isso afirmamos sem ter medo de errar
que o repouso não é seu atributo
Então quando você se sentir insegura lembre bem
que um dia tudo vai virar fumaça
e torça para haver vida inteligente no espaço
porque na terra ela é pra lá de escassa!
[O cantor volta para dentro da geladeira e a porta se fecha]
Senhora Bloke: Faz você se sentir um bocado insignificante, não é?
Primeiro Homem: É, é… E então, podemos ter o seu fígado?
Senhora Bloke: Está bem, você me convenceu.”
Para abordar o problema do sentido da vida iremos tratar de um filme cujo título parece convidativo no que se refere a respostas: “The Meaning of Life” (1983). As perspectivas de uma resposta lógica, racional e sensata se dissipam quando descobrimos que os responsáveis pelo filme são os membros do grupo inglês Monty Python, conhecidos justamente pela falta de sentido que costumam atribuir a tudo o que fazem. Esperar que daí surja uma resposta digna para tão nobre questão seria o mesmo que esperar os irmãos Marx se comportassem durante uma recepção de gala. O que devemos encontrar no filme, portanto, são antes exemplos da total falta de sentido da vida. Vejamos.
O título original em inglês de “The Meaning of Life” nos coloca diante de um primeiro problema. Como traduzir a palavra inglesa “meaning” por “sentido” ou por “significado”? Seria o sentido da vida o mesmo que o significado da vida[1]? Se a língua inglesa não é de grande auxílio na compreensão desta diferença, em português podemos encontrar certas peculiaridades inerentes a cada um destes termos. O sentido, segundo aponta Muniz Sodré é “filosoficamente entendido como a condição necessária à existência de significações ou conceitos veiculados pelos discursos atuantes na organização social”[2]. O sentido é pois aquilo que possibilita que o significado (ou significados) se dê(em). É ao mesmo tempo a condição de possibilidade de algo e seu limite último. Um sentido não é um significado, uma correlação ponto a ponto entre representações, não é uma relação de igualdade, mas sim um vetor, um apontar, uma possibilidade sempre renovada de significar. O sentido é inesgotável enquanto o significado esgota-se a si mesmo.
“The Meaning of Life”, portanto, não poderia ser traduzido por “O Significado da Vida”, pois assim estaria implícito que a vida tem um significado e não um sentido, que ela é um problema e não uma questão. Se a busca por um significado único para a vida parece infrutífera, para a busca de seu sentido, no entanto, talvez haja um caminho a ser traçado.
O filme do Monty Python caracteriza-se, como o conjunto da obra do grupo inglês, pela aparente falta de sentido. Em outros de seus filmes, assim como no programa que por vários anos apresentaram na TV inglesa, o “Monty Python’s Flying Circus”, a característica principal é a de um humor baseado no non-sense. A associação entre humor e não-sentido não é gratuita, serve para mostrar que o sentido não é apenas algo já dado previamente, mas uma experiência dinâmica de transformação em que o absurdo pode, de súbito, ganhar, sentido, isto é, promover um sentido novo.
Este sentido único adotado pelo bom senso vai do mais diferenciado ao mais indiferenciado, do notável ao ordinário, do singular ao particular. Tende, portanto, à organização e à entropia. É o bom senso que orienta a seta do tempo, cria a cronologia, permitindo que haja previsibilidade e, portanto, ciência. Já o paradoxo é essencialmente neguentrópico. Está do lado da desorganização, da criação, da imprevisibilidade; campo do acaso, da vida e do humor. O bom senso ocupa o lugar da significação, mas é ao paradoxo que cabe a doação de sentido. A potência do paradoxo não é seguir a outra direção, mas mostrar que o sentido toma sempre as duas direções ao mesmo tempo, que não é interessante separar duas tendências, uma apropriada ao pensamento dito sério e outra destinada ao lúdico, recreativo e humorístico. Todo sentido é, pois, um duplo sentido.
“The Meaning of Life” não é muito diferente dos demais produtos da fértil imaginação destas crianças super crescidas. Aqui, no entanto, se explicita a visão de mundo que permeia toda a obra, a começar pela intenção do título, equívoca, ambígua, paradoxal. Quem procurar no filme uma resposta para a mais antiga e crucial das questões, aquela que por séculos afligiu e continua a afligir a humanidade… irá encontrá-la. E, no entanto, é impossível que não se decepcione.
Na cena de abertura se coloca como tarefa responder de uma vez por todas a principal questão que o homem já se colocou[3]. E, no entanto, o que vemos desfilar na tela durante as quase duas horas de projeção são cenas bizarras em que se ironiza todas as tentivas de resposta até hoje produzidas. Todas as instituições têm a sua vez: da religião à ciência, da escola ao capital. Cada um a seu tempo, todas são apresentadas como respostas parciais e inadequadas, deixando claro que na disputa pelo lugar da verdade, todas perdem. Eis que finalmente, quando já se dissipavam nossas esperanças, uma luz aparece que talvez traga a solução. Não por acaso ela vem na forma a um tempo previsível e esdrúxula de uma apresentadora de TV. Este que ainda é o mais poderoso mito dos tempos modernos não poderia ficar de fora na disputa pelo lugar da verdade. Que venha da TV, pois, a tão aguardada resposta para o sentido da vida.
Sentada em um estúdio mal decorado, a apresentadora recebe das mãos da produção um envelope contendo a tão ansiada resposta para a questão: qual o sentido da vida. Ela abre o envelope e, sem muito entusiasmo, revela: “Bem, não é nada especial. Seja gentil com as pessoas, evite comidas gordurosas, leia um bom livro de vez em quando e tente viver em paz e harmonia com pessoas de todos os credos e nações”. Sobem os créditos e é o fim do filme.
Mas será? Se refletirmos um pouco, veremos que a mensagem não está completa. Não que este não seja verdadeiramente o sentido da vida. O é, certamente. Mas não é o único. Vários sentidos podem se dar para o mesmo termo “vida”, múltiplas respostas para a mesma questão. Afinal de contas, a vida ela mesma é unidade e multiplicidade ao mesmo tempo, portanto complexidade. Nenhuma única resposta seria capaz de descrevê-la sem reduzir esta complexidade a um ponto de vista.
Se voltarmos a fita e procurarmos no meio do filme, no entanto, talvez encontremos um outro tipo de resposta. Não se trata tampouco de uma resposta definitiva, o que pode também frustrar os mais deterministas, interessados em universais e necessários. Esta não se propõe a ser a resposta última mas antes uma resposta primeira. Como tudo o mais que acontece no universo do Monty Python, aqui é de dentro de uma situação kafkiana e absurda que o sentido, como fagulha, aparece.
“Não se esqueça que você vive em um planeta que evolui
enquanto gira a quilômetros por hora
orbitando veloz e incessantemente
um sol que a qualquer momento pode ir embora
O sol você e eu e todas as estrelas que podemos ver
percorrem milhas e milhas todo dia
em uma parte remota de uma galáxia espiralada
que não é láctea e nem tampouco é uma via
[Ele para momentaneamente de cantar. A música continua. Os dois prosseguem seu passeio sideral enquanto a câmera se afasta, passando a focalizar um grupo de estrelas. Estas começam a se mover e passam a compor um plano a partir do qual uma forma se delineia. A princípio indefinida, a forma aos poucos assume os contornos de uma mulher deitada, os cabelos em desalinho, as pernas abertas. Surge um cometa que dá volta ao seu redor. Finalmente o cometa penetra a vagina da mulher. Sua barriga começa a crescer. Ela cresce, cresce, até que de súbito a imagem explode. A câmera volta a encontrar o casal e o homem de terno rosa recomeça a cantar]
Nossa galáxia, uma das menores, contém 100 bilhões de estrelas
para as quais nem sabemos se há planos
o lugar que ocupamos é meramente casual
e tudo muda a cada 200 milhões de anos
O universo, por sua vez, está sempre se expandindo
a milhões de quilômetros por minuto
por isso afirmamos sem ter medo de errar
que o repouso não é seu atributo
Então quando você se sentir insegura lembre bem
que um dia tudo vai virar fumaça
e torça para haver vida inteligente no espaço
porque na terra ela é pra lá de escassa!
[O cantor volta para dentro da geladeira e a porta se fecha]
Senhora Bloke: Faz você se sentir um bocado insignificante, não é?
Primeiro Homem: É, é… E então, podemos ter o seu fígado?
Senhora Bloke: Está bem, você me convenceu.”
Do mesmo modo que na vida ela mesma, no filme também é do meio do caos que o sentido provém, não por uma qualquer organização, uma simplificação que possibilite que compreendamos o que está passando. É o não-sentido ele mesmo que possibilita uma vez mais a gênese do sentido. Agenciando música e humor, dois ingredientes fundamentais para uma vida “sadia”, o Monty Python aproveita para de quebra deixar uma mensagem extremamente simples: o sentido da vida (nos diz a imagem da mulher sendo fecundada) é a própria vida, a ordem que surge em meio ao caos, o sentido que se dá em meio ao absurdo do não-sentido. O sentido aqui equivale ao mistério: porque há vida? Porque tamanha gratuidade, tamanho acaso, tamanha generosidade? É a pergunta que nenhuma lógica nem ciência podem responder. É a pergunta que mantém o que há de vital, de trágico, excessivo e paradoxal na vida. É o fato de ela simplesmente se dar.
[1] O dicionário inglês/português Novo Michaelis traduz a palavra “meaning” por “1. significado, sentido”.
[2] SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida, p.44.
[3] A canção de abertura diz: “Is life just a game where we make up the rules/While we’re searching for something to say/Or are we just simple spiraling coils/Of self-replicating DNA?/What is life? What is our fate?/Is there heaven and hell? Do we reincarnate?/Is mankind evolving or is it too late?/Well tonight here’s the Meaning of Life”. (A vida é apenas um jogo onde nós fazemos as regras?/Enquanto nós procuramos por alguma coisa para dizer?/ Ou nós somos simplesmente rolos espirais/De um DNA auto-replicador?/O quê é a vida? O quê é nosso destino?/Há paraíso e inferno? Nós reencarnamos?/Está a humanidade evoluindo ou já é tarde demais?/ Bem esta noite apresentamos o Sentido da Vida”)
* Márcio Acserald é Graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1990), Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997) e Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Atualmente é professor adjunto da Universidade de Fortaleza e professor horista da Faculdade 7 de Setembro.