quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Aldeia? Global?

Márcio Acserald*


Todo teórico que se preza busca uma teoria total, aquela que resolve todos os problemas, sendo superior a tudo o que já foi escrito e pensado até ele. Essa tendência hegeliana presente em boa parte do pensamento acadêmico produz generalizações de todos os matizes bem como afirmações pouco modestas como a do francês Guy Debord: "O primeiro mérito de uma teoria crítica exata é fazer parecerem rídiculas, de imediato, todas as demais". O Canadense Marshall McLuhan não é menos pretencioso. De sua pouco sistemática obra pinçam-se aqui e ali frases e expressões que caíram no gosto popular e tornaram-se chavões (do mesmo modo que aconteceu com os termos indústria cultural, simulacro, sociedade do espetáculo, etc). Encarar a expressão "aldeia global" como conceito traz alguns problemas interessantes. A expressão antecede as principais discussões acerca do papel da comunicação na pós-modernidade, tendo sido cunhada em pleno apogeu da sociedade de massa. A ferramenta mesma que McLuhan analisa é a televisão, mais do que o telefone, por exemplo. Neste sentido sua "aldeia" diz mais respeito à milhoes de pessoas sintonizadas via satélite a uma mesma mensagem do que ao mundo interconectado que hoje vislumbramos. Neste sentido a expressão é um tanto premonitória. Hoje, sim, graças a tecnologias apenas imagináveis nos anos 1960, teríamos a possibilidade de transformar o complexo planeta habitado por bilhões de pessoas diferentes, de culturas diferentes e falando línguas diferentes em uma única e mesma aldeia. Uma aldeia em que todos são diferentes, não iguais. O ideal de congraçamento universal não é novo. Desde o mito da torre de Babel passando pelo ideal iluminista de uma "civilizatas" mundial e pela criação do esperanto o homem busca superar as suas dificuldades e encontrar-se em uma situação de comunicação plena. Outras ferramentas antecederam a internet nesta busca, como livros, enciclopédias e jornais. O que falta a eles, no entanto, continua faltando à televisão e à rede mundial de computadores, a saber, todos estes instrumentos são meios, e como meios não são capazes de fazer o que só nós, usuários, podemos fazer. Transformar o mundo em uma aldeia global depende muito mais de força de vontade do que de recursos tecnológicos de comunicação. Interligar, sim. Mas para dizer o que? Afirmar que os meios de comunicação são extensões do homem, como fazia o canadense, não responde à questão ética fundamental: qual o uso que se faz destas extensões? Extensões do homem são (des)igualmente o lápis e o canhão. A se lamentar ainda o fato de que a consciência global em nossa era não venha tanto do salutar encontro com outro e do dialógo com a diferença, mas antes da melancólica situação em que o planeta se encontra, com o risco de autodestruição não tanto pela bomba atômica, que inaugurou a era da consciência global pela possibilidade de perda do planeta, mas pela ingerência dos donos do capital, que pensavam que poderiam sugar as energias da terra do mesmo modo que o fazem com a energia daqueles que se sujeitam a trabalhar para eles.
*Professor de Teoria da Comunicação da UNIFOR e da FA7. Doutor em Comunicação pela UFRJ.

domingo, 27 de setembro de 2009

O Ético-Político e a Universidade

Ubiracy de Souza Braga*
Nietzsche foi um pensador radical e altamente original. Ele foi profético, poético e profundamente crítico em relação à filosofia de seu tempo. De estilo absorvente, a intensidade de seus escritos tornaram suas idéias bastantes atraentes para um público em geral, muitas vezes leigos, e em razão disto a qualidade intelectual do seu pensamento tem sido muitas vezes omitida. De saúde frágil, ele renunciou ao cargo na Universidade de Basiléia por conta de sua astenia.
Mas deixou-nos como legado, a idéia posteriormente retomada por Heidegger de que, se a memória é a concentração do pensamento, "então o homem pode pensar à medida que tem a possibilidade de pensar". Mas talvez o homem queira pensar e não possa. Em última instância, com este querer-pensar o homem quer demais e, por isso, pode de menos. E, no entanto... Talvez o homem vem agindo demais e pensando de menos. Por isso nunca é demais repetir que "parece presunçoso afirmar que ainda não pensamos".
Para Gaston Bachelard os centros de devaneios bem determinados, são meios de comunicação entre os homens do sonho com a mesma segurança que os conceitos bem definidos são meios de comunicação entre os homens do pensamento, como a casa que, em face da hostilidade, com as formas animais da tempestade e da borrasca, os valores de proteção e de resistência da casa são transformados em valores humanos. A casa toma as energias físicas e morais de um corpo humano. Tal casa chama o homem a um heroísmo do cosmo. Analogamente a universidade não tem a representação social para a "comunidade acadêmica", no sentido que emprega Richard Rorty.
A universidade vem sendo idiotizada pelo ager publicus, é preciso, pois, desvincular essa "prática de lugar" para uma "prática de espaço" reconhecidamente pluralista, onde a diversidade e a diferença edifiquem-se como exemplo de democracia, em benefício da produção do saber e não do contrário, como ocorre nestes dias. Um membro não é, portanto, apenas uma pessoas que respira e pensa. É por extensão alguém que, tendo incorporado os etnometodólogos de um estamento ou grupamento social considerado, exibe naturalmente a competência social que o agrega a esse grupo e lhe permite fazer-se reconhecer e aceitar.
* Sociológo, Cientista Político. Professor da Coordenação de curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

domingo, 14 de junho de 2009

Vida, sentido e não-sentido - seria trágico se não fosse cômico

Márcio Acserald*


Para abordar o problema do sentido da vida iremos tratar de um filme cujo título parece convidativo no que se refere a respostas: “The Meaning of Life” (1983). As perspectivas de uma resposta lógica, racional e sensata se dissipam quando descobrimos que os responsáveis pelo filme são os membros do grupo inglês Monty Python, conhecidos justamente pela falta de sentido que costumam atribuir a tudo o que fazem. Esperar que daí surja uma resposta digna para tão nobre questão seria o mesmo que esperar os irmãos Marx se comportassem durante uma recepção de gala. O que devemos encontrar no filme, portanto, são antes exemplos da total falta de sentido da vida. Vejamos.

O título original em inglês de “The Meaning of Life” nos coloca diante de um primeiro problema. Como traduzir a palavra inglesa “meaning” por “sentido” ou por “significado”? Seria o sentido da vida o mesmo que o significado da vida[1]? Se a língua inglesa não é de grande auxílio na compreensão desta diferença, em português podemos encontrar certas peculiaridades inerentes a cada um destes termos. O sentido, segundo aponta Muniz Sodré é “filosoficamente entendido como a condição necessária à existência de significações ou conceitos veiculados pelos discursos atuantes na organização social”[2]. O sentido é pois aquilo que possibilita que o significado (ou significados) se dê(em). É ao mesmo tempo a condição de possibilidade de algo e seu limite último. Um sentido não é um significado, uma correlação ponto a ponto entre representações, não é uma relação de igualdade, mas sim um vetor, um apontar, uma possibilidade sempre renovada de significar. O sentido é inesgotável enquanto o significado esgota-se a si mesmo.

“The Meaning of Life”, portanto, não poderia ser traduzido por “O Significado da Vida”, pois assim estaria implícito que a vida tem um significado e não um sentido, que ela é um problema e não uma questão. Se a busca por um significado único para a vida parece infrutífera, para a busca de seu sentido, no entanto, talvez haja um caminho a ser traçado.

O filme do Monty Python caracteriza-se, como o conjunto da obra do grupo inglês, pela aparente falta de sentido. Em outros de seus filmes, assim como no programa que por vários anos apresentaram na TV inglesa, o “Monty Python’s Flying Circus”, a característica principal é a de um humor baseado no non-sense. A associação entre humor e não-sentido não é gratuita, serve para mostrar que o sentido não é apenas algo já dado previamente, mas uma experiência dinâmica de transformação em que o absurdo pode, de súbito, ganhar, sentido, isto é, promover um sentido novo.

Este sentido único adotado pelo bom senso vai do mais diferenciado ao mais indiferenciado, do notável ao ordinário, do singular ao particular. Tende, portanto, à organização e à entropia. É o bom senso que orienta a seta do tempo, cria a cronologia, permitindo que haja previsibilidade e, portanto, ciência. Já o paradoxo é essencialmente neguentrópico. Está do lado da desorganização, da criação, da imprevisibilidade; campo do acaso, da vida e do humor. O bom senso ocupa o lugar da significação, mas é ao paradoxo que cabe a doação de sentido. A potência do paradoxo não é seguir a outra direção, mas mostrar que o sentido toma sempre as duas direções ao mesmo tempo, que não é interessante separar duas tendências, uma apropriada ao pensamento dito sério e outra destinada ao lúdico, recreativo e humorístico. Todo sentido é, pois, um duplo sentido.

“The Meaning of Life” não é muito diferente dos demais produtos da fértil imaginação destas crianças super crescidas. Aqui, no entanto, se explicita a visão de mundo que permeia toda a obra, a começar pela intenção do título, equívoca, ambígua, paradoxal. Quem procurar no filme uma resposta para a mais antiga e crucial das questões, aquela que por séculos afligiu e continua a afligir a humanidade… irá encontrá-la. E, no entanto, é impossível que não se decepcione.

Na cena de abertura se coloca como tarefa responder de uma vez por todas a principal questão que o homem já se colocou[3]. E, no entanto, o que vemos desfilar na tela durante as quase duas horas de projeção são cenas bizarras em que se ironiza todas as tentivas de resposta até hoje produzidas. Todas as instituições têm a sua vez: da religião à ciência, da escola ao capital. Cada um a seu tempo, todas são apresentadas como respostas parciais e inadequadas, deixando claro que na disputa pelo lugar da verdade, todas perdem. Eis que finalmente, quando já se dissipavam nossas esperanças, uma luz aparece que talvez traga a solução. Não por acaso ela vem na forma a um tempo previsível e esdrúxula de uma apresentadora de TV. Este que ainda é o mais poderoso mito dos tempos modernos não poderia ficar de fora na disputa pelo lugar da verdade. Que venha da TV, pois, a tão aguardada resposta para o sentido da vida.

Sentada em um estúdio mal decorado, a apresentadora recebe das mãos da produção um envelope contendo a tão ansiada resposta para a questão: qual o sentido da vida. Ela abre o envelope e, sem muito entusiasmo, revela: “Bem, não é nada especial. Seja gentil com as pessoas, evite comidas gordurosas, leia um bom livro de vez em quando e tente viver em paz e harmonia com pessoas de todos os credos e nações”. Sobem os créditos e é o fim do filme.

Mas será? Se refletirmos um pouco, veremos que a mensagem não está completa. Não que este não seja verdadeiramente o sentido da vida. O é, certamente. Mas não é o único. Vários sentidos podem se dar para o mesmo termo “vida”, múltiplas respostas para a mesma questão. Afinal de contas, a vida ela mesma é unidade e multiplicidade ao mesmo tempo, portanto complexidade. Nenhuma única resposta seria capaz de descrevê-la sem reduzir esta complexidade a um ponto de vista.

Se voltarmos a fita e procurarmos no meio do filme, no entanto, talvez encontremos um outro tipo de resposta. Não se trata tampouco de uma resposta definitiva, o que pode também frustrar os mais deterministas, interessados em universais e necessários. Esta não se propõe a ser a resposta última mas antes uma resposta primeira. Como tudo o mais que acontece no universo do Monty Python, aqui é de dentro de uma situação kafkiana e absurda que o sentido, como fagulha, aparece.

“Não se esqueça que você vive em um planeta que evolui
enquanto gira a quilômetros por hora
orbitando veloz e incessantemente
um sol que a qualquer momento pode ir embora
O sol você e eu e todas as estrelas que podemos ver
percorrem milhas e milhas todo dia
em uma parte remota de uma galáxia espiralada
que não é láctea e nem tampouco é uma via

[Ele para momentaneamente de cantar. A música continua. Os dois prosseguem seu passeio sideral enquanto a câmera se afasta, passando a focalizar um grupo de estrelas. Estas começam a se mover e passam a compor um plano a partir do qual uma forma se delineia. A princípio indefinida, a forma aos poucos assume os contornos de uma mulher deitada, os cabelos em desalinho, as pernas abertas. Surge um cometa que dá volta ao seu redor. Finalmente o cometa penetra a vagina da mulher. Sua barriga começa a crescer. Ela cresce, cresce, até que de súbito a imagem explode. A câmera volta a encontrar o casal e o homem de terno rosa recomeça a cantar]

Nossa galáxia, uma das menores, contém 100 bilhões de estrelas
para as quais nem sabemos se há planos
o lugar que ocupamos é meramente casual
e tudo muda a cada 200 milhões de anos
O universo, por sua vez, está sempre se expandindo
a milhões de quilômetros por minuto
por isso afirmamos sem ter medo de errar
que o repouso não é seu atributo
Então quando você se sentir insegura lembre bem
que um dia tudo vai virar fumaça
e torça para haver vida inteligente no espaço
porque na terra ela é pra lá de escassa!

[O cantor volta para dentro da geladeira e a porta se fecha]
Senhora Bloke: Faz você se sentir um bocado insignificante, não é?
Primeiro Homem: É, é… E então, podemos ter o seu fígado?
Senhora Bloke: Está bem, você me convenceu.”

Do mesmo modo que na vida ela mesma, no filme também é do meio do caos que o sentido provém, não por uma qualquer organização, uma simplificação que possibilite que compreendamos o que está passando. É o não-sentido ele mesmo que possibilita uma vez mais a gênese do sentido. Agenciando música e humor, dois ingredientes fundamentais para uma vida “sadia”, o Monty Python aproveita para de quebra deixar uma mensagem extremamente simples: o sentido da vida (nos diz a imagem da mulher sendo fecundada) é a própria vida, a ordem que surge em meio ao caos, o sentido que se dá em meio ao absurdo do não-sentido. O sentido aqui equivale ao mistério: porque há vida? Porque tamanha gratuidade, tamanho acaso, tamanha generosidade? É a pergunta que nenhuma lógica nem ciência podem responder. É a pergunta que mantém o que há de vital, de trágico, excessivo e paradoxal na vida. É o fato de ela simplesmente se dar.

[1] O dicionário inglês/português Novo Michaelis traduz a palavra “meaning” por “1. significado, sentido”.

[2] SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida, p.44.

[3] A canção de abertura diz: “Is life just a game where we make up the rules/While we’re searching for something to say/Or are we just simple spiraling coils/Of self-replicating DNA?/What is life? What is our fate?/Is there heaven and hell? Do we reincarnate?/Is mankind evolving or is it too late?/Well tonight here’s the Meaning of Life”. (A vida é apenas um jogo onde nós fazemos as regras?/Enquanto nós procuramos por alguma coisa para dizer?/ Ou nós somos simplesmente rolos espirais/De um DNA auto-replicador?/O quê é a vida? O quê é nosso destino?/Há paraíso e inferno? Nós reencarnamos?/Está a humanidade evoluindo ou já é tarde demais?/ Bem esta noite apresentamos o Sentido da Vida”)
>.

* Márcio Acserald é Graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1990), Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997) e Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Atualmente é professor adjunto da Universidade de Fortaleza e professor horista da Faculdade 7 de Setembro.

sábado, 6 de junho de 2009

O Homem diante da Morte

Ubiracy de Souza Braga*
“Os mortos tolhem os vivos”.
Auguste Comte

Lamentavelmente a 5ª economia do país, da floricultura à indústria naval, o estado do Ceará, caminha na contramão da história em termos políticos de garantia e manutenção dos direitos civis. Da prostituição infantil, chamada pelo poder público e pela grande imprensa de “turismo sexual” à formação de grupos de extermínio, o que vemos nesses dias noticiadas flagrantemente nas páginas dos jornais são cenas de desrespeito aos mortos e suas famílias, praticadas por um governo que se diz democrático e socialista. O flagrante aconteceu exatamente ao meio-dia, quando um “rabecão”, carro de transporte de cadáveres, do Instituto Médico Legal (IML), propositadamente sem placa de identificação e totalmente descaracterizado, parou em uma rua estreita, junto a um matagal ao lado do Cemitério Bom Jardim, na zona sul de Fortaleza.

São cenas macabras e estarrecedoras, como se fosse um pesadelo bergmaniano, ou, conhecidas vulgarmente pelos grupos de extermínio, post festum como “desova”, em diversas regiões do país, mas com o agravante de que ali já estavam funcionários de uma empresa “terceirizada” que trabalham profissionalmente como coveiros. De forma rápida e sorrateira, os funcionários do IML abriram as portas do “rabecão” e puxavam os gavetões onde havia corpos inteiros e “pedaços humanos”, como vemos nos seguintes depoimentos: “Já vi o rabecão jogando os corpos nas valas. É uma cena que deixa a gente com raiva e muito comovido” (depoimento de Wellington Teixeira, 50 anos, Feirante). Ou, “Já vimos pedaços de gente sendo levados pela correnteza. Com as últimas chuvas, muitas covas se abriram” (depoimento de Maria Barbosa, 48 anos, Dona-de-casa).

Mutatis mutandis o conservadorismo, em certo sentido, surgiu do tradicionalismo: de fato, ele é primordialmente nada mais do que o tradicionalismo tornado consciente. Apesar disso, os dois não são sinônimos, na medida em que o tradicionalismo só assume seus traços especificamente conservadores, enquanto expressão de um modo de vida e pensamento, como um movimento relativamente autônomo no processo social. Uma das características mais essenciais desse modo de vida e desse pensamento conservador parece ser a forma como ele se apega ao imediato, o real, o concreto. Augusto Comte, por exemplo, em seu Système de Politique Positive (1828), afirmava que “a sã política não deveria ter por objeto fazer avançar a espécie humana, que se mova por impulso próprio, seguindo uma lei tão necessária quanto a da gravidade, embora mais modificável; ela tem por finalidade facilitar sua marcha, iluminando-a”. O conservador somente pensa em termos dos “sistemas como reação”, quando é forçado a desenvolver um sistema próprio para contrapor ao dos progressistas ou quando a marcha dos acontecimentos, o priva de qualquer influência sobre o presente imediato, de tal forma que ele seria obrigado a “girar a roda da história para trás” a fim de reconquistar a sua influência ao nível ideológico ou político propriamente dito.

Sua natureza peculiar pode ser mais claramente percebida no seu conceito de propriedade de forma anteriormente diversa da propriedade de hoje. Aquele sentido genuíno trazia consigo certos privilégios para seu dono – por exemplo; dava-lhe vez nas questões de Estado, o direito de caçar, de se tornar membro de júri. Dessa forma a propriedade estava estreitamente ligada à honra pessoal e ao prestígio, como bem analisou Max Weber com seus “tipos puros de dominação legítima” e, portanto, era em certo sentido inalienável. Assim, existia uma relação completamente intransferível e recíproca entre uma propriedade em particular e um dono em particular. O conceito de “tipo ideal” se situa no ponto de convergência de várias tendências do pensamento weberiano. Ele está ligado à noção de compreensão, pois todo tipo ideal é uma organização de relações inteligíveis próprias a um “conjunto histórico” ou a uma “seqüência de acontecimentos”. Por outro lado, o tipo ideal está associado ao que é característico da sociedade e da ciência moderna, a saber, o processo de racionalização, tão bem desenvolvido pela haerentia da Escola de Frankfurt a partir da concepção de Jürgen Habermas. E, de fato, Habermas tem como escopo de sua análise os chamados “países capitalistas avançados” que desde o último quartel do século XIX apresentam duas tendências evolutivas: 1) um incremento da atividade intervencionista do Estado, que deve assegurar a estabilidade do sistema e, 2) uma crescente interdependência de investigação técnica, que transformou as ciências na primeira força produtiva. Ambas as tendências destroem aquela constelação de marco institucional e subsistemas de ação racional dirigida a fins, pela qual se caracteriza o capitalismo de tipo liberal. Por isso mesmo, é que não se cumprem, assim, condições relevantes de aplicação para a economia política na versão que Marx, com razão, lhe dera relativamente ao capitalismo liberal, ou seja, já não pode também desenvolver-se uma teoria crítica da sociedade na “forma exclusiva de uma crítica da economia política”.

Na medida em que a atividade estatal visa à estabilidade e o crescimento do sistema econômico, a política assume um peculiar caráter negativo: orienta-se para prevenção das disfuncionalidades e para o evitamento dos riscos que possam ameaçar o sistema; portanto, a política visa não a realização de fins práticos, mas a resolução de questões técnicas. Portanto, a solução de tarefas técnicas não está referida à discussão pública. As discussões públicas poderiam antes problematizar as condições marginais do sistema, dentro dos quais as tarefas da atividade estatal se apresentam como técnicas. A nova política do intervencionismo estatal exige, por isso, uma despolitização da “massa da população”. Por outro lado, o marco institucional da sociedade continua separado dos sistemas de ação racional dirigida a fins. A sua organização continua a ser uma questão de práxis ligada à comunicação e não apenas da técnica, ainda que sempre de cunho científico.

Deste modo, sem dúvida, os interesses continuam a determinar a direção, as funções e a velocidade do progresso técnico. Mas tais interesses definem de tal modo o sistema social como um todo, que coincidem com o interesse pela manutenção do sistema. A forma privada da valorização do capital e a chave de distribuição das compensações sociais, que garantem a lealdade da população, permanecem como tais subtraídas à discussão. Como variável independente, aparece então um progresso quase autônomo da ciência e da técnica, do qual depende de fato a outra variável mais importante do sistema, a saber, o crescimento econômico. Cria-se assim uma perspectiva na qual a evolução do sistema social parece estar determinada pela lógica do progresso técnico-científico.

A legalidade imanente de tal progresso parece produzir as coações materiais pelas quais se deve pautar uma política que se submete às necessidades funcionais. E quando esta aparência se impôs com eficácia, então, referência propagandista ao papel da técnica e da ciência pode explicar e legitimar porque é que, nas sociedades modernas, uma formação “democrática da vontade política” perdeu as suas funções em relação às questões políticas e “deve” ser substituída por decisões plebiscitárias acerca de equipes alternativas de administradores. Daí que o conceito abstrato de propriedade da burguesia suprimiu a antiga concretização do conhecimento. Portanto, a abstração das relações humanas sob o capitalismo, que é constantemente enfatizada por Marx, e é claro depois dele, certamente por Émile Durkheim, quando afirma “o nosso método não tem, portanto, nada de revolucionário. É até, num certo sentido, essencialmente conservador, uma vez que considera os fatos sociais como coisas cuja natureza, por mais elástica e maleável que seja não é, no entanto, modificável à nossa vontade”, quer dizer, foi originalmente uma descoberta dos observadores do campo conservador por que são reativos.

O fundamental é que essa insistência sobre o “concreto”, ou antiga concretização do conhecimento, é um sintoma do fato de que o conservadorismo conhece os processos históricos em termos de relações e situações que existem apenas como “restos do passado”, e do fato de que os impulsos em direção à ação, que brotam dessa maneira de se conhecer a história, são também centradas sobre relações passadas que ainda sobrevivem no presente, daí a idéia comteana de que “os mortos tolhem os vivos”. Ipso facto o pensamento conservador autêntico tem sua relevância e dignidade baseada em algo mais do que mera especulação baseada no fato de que as atitudes vistas desse tipo ainda sobrevivem em vários setores da sociedade, posto que desde Honoré de Balzac, na literatura, e Karl Marx na filosofia política, temos que para o primeiro, “todo dinheiro é sujo por definição”, mas para o segundo hinc et nunc, “todo Estado é corrupto”. Ou, ainda na genealogia sobre o poder em Michel Foucault, para quem “o Estado produz efeitos de poder político”.

E é esse mesmo Foucault que os adverte quanto à definição do trabalho que é preciso realizar sobre si mesmo, uma certa modificação: através dos exercícios de abstinência e de domínio que constituem a askesis necessária, o lugar atribuído ao conhecimento de si torna-se mais importante: a tarefa de se por à prova, de se examinar, de controlar-se numa série de exercícios bem definidos, coloca a questão da verdade – da verdade do que se é, do que se faz e do que se é capaz de fazer – no cerne da constituição do sujeito moral. E finalmente, “o ponto de chegada dessa elaboração é ainda e sempre definido pela soberania do indivíduo sobre si mesmo; mas essa soberania amplia-se numa experiência onde a relação consigo assume a forma, não somente de uma dominação mas de um gozo sem desejo e sem perturbação”.

Ora, finalmente, independentemente das formas políticas ou religiosas contidas nas civilizações, judaica, cristã ou muçulmana, sabemos que enterrar os mortos é um ritual entre o imaginário individual (o sonho), o imaginário coletivo (os mitos, os ritos, os símbolos) e a obra de ficção, necessário de preservação da memória individual e coletiva, ipso facto as ditaduras nazistas, fascistas ou stalinistas a terem ignorado. Antes de ser apenas um ato legal (Estado), o sepultamento constitui um ritual sagrado, etnograficamente falando, como vemos na mitologia cristã, mais do que isso, posto que enterrar o corpo significa garantir a ressurreição. “É um direito sagrado que faz parte da ética humana e religiosa”, afirma o padre Luís Sartorel, diretor do Instituto de Ciências Religiosas (Icre), completando ser um grande desrespeito à dignidade humana a violação deste direito individual e, além disso, afirma, “o ritual fúnebre inclui oração, choro, veneração e luto”. O teólogo considera importante a identificação da pessoa, bem como a localização de parentes pelas autoridades para que tomem conhecimento da morte do parente, last but no least diante da falta de câmaras para a conservação dos corpos dos indigentes, a direção do IML, decidiu manter a política de enterrá-los rapidamente em valas comuns. O desrespeito aos mortos e aos seus familiares, portanto, deverá continuar através da elite política no poder na sociedade alencarina.

De acordo com P. Clastres (1934-1977), membro do Laboratoire d`Anthropologie Sociale do Collège de France (CNRS, Paris), e autor, entre outros, de Chronique des Indiens Guayaki (1972), La Sociétè contre l`Éat. Recherches d`anthropologie politique (1974), Le Grand Parler. Mythes et chants sacrès des Indiens Guarani (1974), Recherches d`anthropologie politique (1980), Myhologie des Indiens Chulupi (1992), mas no ensaio Arqueologia da Violência o autor indaga o seguinte: “O Ocidente seria etnocida porque é etnocêntrico, porque se pensa e se quer a civilização. Uma questão porém se coloca: nossa cultura detém o monopólio do etnocentrismo? A experiência etnológica permite responde a isso. Consideremos a maneira como as sociedades primitivas nomeiam a si mesmas. Percebe-se que, na realidade, não há autodenominação, na medida em que, de modo recorrente, as sociedades se atribuem quase sempre um único e mesmo nome: os Homens.

Ilustrando com alguns exemplos esse traço cultural, lembraremos que os índios Guarani nomeiavam-se Ava, que significa os Homens; que os Guayaki da Venezuela se proclamam. O Yanomani, a “Gente”; que os esquimós são Innuit, “Homens”. Poder-se-ia estender indefinidamente a lista desses nomes próprios que compõem um dicionário em que todas as palavras têm o mesmo sentido: homens. Inversamente, cada sociedade designa sistematicamente seus vizinhos por nomes pejorativos, desdenhosos, injuriosos” (Clastres, 2004:85). Daí o fato cultural que reitera o etnocentrismo quando afirma-se que:

Toda cultura opera assim uma divisão entre ela mesma, que se afirma como representação por excelência do humano, e os outros, que participam da humanidade apenas em grau menor. O discurso que as sociedades primitivas fazem sobre si mesmas, discurso condensado nos nomes que elas se dão, é portanto etnocêntrico de uma ponta á outra: afirmação da superioridade de sua existência cultural, recusa de reconhecer os outros como iguais. O etnocentrismo aparece então como a coisa do mundo mais bem distribuída e, desse ponto de vista pelo menos, a cultura do Ocidente não se distingue das outras. Convém mesmo, aprofundando um pouco mais a análise, pensar o etnocentrismo como uma propriedade formal de toda formação cultural, como imanente à própria cultura. Pertence à essência da cultura ser etnocêntrica, na medida exata em que toda cultura se considera como a cultura por excelência. Em outras palavras, a alteridade cultural nunca é apreendida como diferença positiva, mas sempre como inferioridade segundo um eixo hierárquico” (Clastres, 2004:85-86).

Desta forma é aceito que o etnocídio é a supressão das diferenças culturais julgadas “inferiores e más”; é a aplicação de um princípio de identificação, de um projeto de redução do outro ao mesmo, como ocorre, por exemplo, com o índio amazônico suprimido como outro e reduzido ao mesmo tempo como cidadão brasileiro. Em outras palavras, o etnocídio resulta na dissolução do múliplo no Um. Mas para o que nos interessa o que significa agora o Estado? Ele é, por essência, o emprego de uma força centrípeta que tende, quando as circunstâncias o exigem, a esmagar as forças centrífugas inversas. O Estado se quer e se proclama o centro da sociedade, o todo do corpo social, o mestre absoluto dos diversos órgãos desse corpo. Descobre-se assim, no núcleo mesmo dessa substância do Estado, a força atuante do Um, a vocação de recusa do múltiplo, o temor e o horror da diferença. Nesse nível formal em que nos situamos atualmente, afirma P. Clastres, “constata-se que a prática etnocida e a máquina estatal funcionam da mesma maneira e produzem os mesmos efeitos: sob as espécies da civilização ocidental ou do Estado, revelam-se sempre a vontade de redução da diferença e da alteridade, o sentido e o gosto do idêntico e do Um”. Estejamos atentos!

* Sociólogo, Cientista Político, Comunicólogo. Professor da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (uece).

domingo, 24 de maio de 2009

Ruídos de Comunicação

Ubiracy de Souza Braga*

O direito dos feirantes em utilizar a Praça Pedro II, conhecida como da Sé, das 15 horas do último domingo até às 7 horas da manhã, parece ter irritado a prefeita Luizianne Lins que de forma intransigente determinou o “fim da feira” naquele logradouro público. Mas o que está em jogo nestas relações de poder? Aparentemente “uma série de ruídos de comunicação” entre governo e governados; entre legitimidade e legalidade; ou, sobre o controle do espaço público pela temerosa AMC. A tese da “legitimidade da ordem” sempre diz respeito ao discurso que diz a lei: “vão controlar o espaço público para evitar a presença de...” e assim por diante.

Sociológica e juridicamente falando estamos diante de um busílis: a) Nem todo processo de comunicação é um processo de trabalho, mas todo processo de trabalho é um processo de comunicação. E isto fica provado pela jornada de trabalho contraída pela relação espaço-tempo na praça da Sé: das 15h00 min de domingo às 7: 00 horas da manhã seguinte; b) No mês de abril no Ceará foram criados 3.230 empregos, mas em contrapartida, em relação ao número de assalariados com carteira assinada em março, a elevação em abril chegou a 0,39%; c) as recentes intervenções da Polícia Federal no Estado são crescentes: a) com prisão de pessoas por posse e distribuição de pornografia infantil na internet – rede mundial de computadores; b) com a chamada persistência do “turismo sexual” propriamente dito.; c) com o tráfico de seres humanos e de drogas para o exterior, para não mencionarmos a presença do trabalho escravo.

Pelo exposto, notamos que são inúmeros os “ruídos de comunicação” no perímetro urbano da cidade de Fortaleza. Contudo, parece-nos que o calcanhar de Aquiles das políticas públicas não se resolve com a barganha, com o “savoir-faire” na política. Vimos isso com a greve dos professores do ensino médio; vimos isso com a “operação tapa-buracos”; vimos isso com a construção do hospital da mulher; vimos isso com a licitação para pagamento de honorários de artistas nas festividades de reveillon na praia de Iracema; vimos isso com a questão da emissão das carteiras de estudantes, oxalá não haja outras fantasmagorias inclusive na grandiosa festa de carnaval “fora de época”? A pergunta que fica é a seguinte: por em foco a política que determina “o fim da Feira da Sé” serve pra encobrir as tropelias da prefeitura?

* Sociólogo, Cientista Político, Comunicólogo. Professor da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (uece).

domingo, 26 de abril de 2009

Ajustando o Foco das Lentes: O martírio de Tiradentes

Ubiracy de Souza Braga[i]

Escrever não é certamente impor uma forma de escrita a uma matéria vivida, mas toda forma de escrita representa em si um estilo literário. É discussão longa, decerto, passagem de vida que atravessa o visível e o vivido, é um devir, embora inacabado, em vias de fazer-se, segundo portas, limiares e zonas que compõem o universo inteiro. Ipso facto, um homem sem-vergonha não traz sentido ao escrever, mas inversamente, se concordarmos com a indagação: “a vergonha de ser um homem, haverá razão melhor para escrever?”.
Para o historiador José Honório Rodrigues (1970), Varnhagen é um mestre da história geral do Brasil por várias razões. Metodologicamente falando, vale lembrar, por que como historiador, todos os seus contemporâneos, desde 1878 – data de sua morte e do elogio do escritor cearense Capistrano de Abreu – até os dias de hoje é um historiador incomparável pela vastidão das pesquisas que realizou e dos fatos que revelou; incomparável pela publicação de inéditos que promoveu; incomparável pela perseverança com que caminhou pelos caminhos da história brasileira, até então nunca palmilhados; incomparável pela obra preliminar que antecede sua História do Brasil; incomparável por esta mesma História Geral, que desconhecia antecessores nacionais; incomparável, ainda, pela própria obra complementar que supre lacunas e amplia o horizonte do conhecimento; incomparável, finalmente, porque a obra parcial, como a História dos Holandeses no Brasil ou a História da Independência, representa, na sua época, um novo avanço historiográfico e uma nova aquisição da consciência nacional.
Realmente, a História geral do Brasil contém como revelação de fatos mais do que se pode esperar o leitor desavisado. O que é desastroso, para alguns críticos, mesmos nos dias de hoje, diz respeito ao fato de que, “a distribuição da matéria não obedece a critérios rigorosos; segue mais a cronologia que a temática; a intitulação dos capítulos é inexpressiva, pois mais esconde que revela as novidades que contêm”. Porque é mais cronológica que temática, na concepção geral, é também expressão de um processo construtivo mais estático que dinâmico. Quando repete o mesmo tema – os progressos do Brasil, por exemplo, nos séculos XVI, XVII e XVIII – inspirado, creio eu, no historiador inglês Robert Southey, que assim o fizera, a dinâmica do processo histórico se caracteriza, tendo em vista que “o grande tema é a obra da colonização portuguesa no Brasil”.
Para concordarmos com a análise de Rodrigues, leitor de Varnhagen entendemos que, “em toda a obra, queira ou não Varnhagen, o sentido da História do Brasil se revela na luta até o extermínio dos índios, na submissão dos escravos negros, nas rebeliões, nas insurreições, no terror oficial da política portuguesa, na insegurança de todos, especialmente da maioria, na força dos Potentados, nas grandes fomes e grandes epidemias [que surgiram com a presença dos invasores portugueses etc.], nas fraquezas da justiça, enfim, no solo encharcado de sangue”.
O longo e sinuoso caminho colonial da História do Brasil não foi escondido por Varnhagen, pois quem ler integralmente a História geral do Brasil verá que nela não se foge à verdade de que no Brasil o grande problema foi sempre garantir e assegurar a maioria contra os abusos e os excessos da minoria: perseguições políticas e religiosas, discriminações raciais, censura, absolutismo, falta de ensino, de imprensa, somam-se aos excessos dos castigos exemplares dados às maiorias conservadas sempre em estado de “minoridade política e civil”. Abusos das autoridades, lutas entre governadores e magistrados, a corrupção e relaxação das minorias dirigentes – os governos longos, de trinta, de vinte e cinco, de quinze anos não são exceção – dão ipso facto à História geral do Brasil, escrita, como é sabido por um conservador, um sentido revelador. Ou seja, não é surpresa que um homem tão solidamente fortificado na sua ideologia conservadora e na sua política pragmática, que jamais colocou o debate no terreno abstrato e absoluto da Justiça, mas no da convivência e da utilidade, como observou Capistrano de Abreu, deixasse ocultas as fraquezas essenciais do colonialismo.
A opinião de F. A. de Varnhagen não era isolada, mas representativa da política colonial portuguesa dominante, como da época em que escrevia o tenente norte-americano Herdon contou a Handelmann, que um português do Pará lhe dissera, em 1852, que em matéria de reforma dos índios: “o melhor seria enforcá-los a todos” (sic). E de fato, muitas vezes é tal a aversão de Varnhagen às “populações brasileiras mais baixas e modestas”. Ou, melhor dizendo, na expressão de Slavoj Žižek no sentido psicanalítico do termo, “a inveja do gozo do outro”, onde “trechos de sua História se convertem em noticiário de ocorrências policiais” (...). “O que não impede que até as futilidades participem de seu temário (...) o que não é muito estranho à nossa historiografia menos qualificada”.
Faltava-lhe, como observou Capistrano de Abreu, “o espírito compreensivo e simpático, que o tornasse contemporâneo e confidente dos homens e dos acontecimentos”. Com as novas edições ele recua em algumas de suas opiniões como são os casos das análises sobre a Inconfidência Mineira, para o que nos interessa, e a Revolução de 1817 last but no least que sofreram “retoques importantes”. Ou seja, reviu sua (ex)posição nessas rebeldias de “gente qualificada” e não nas outras, nas “dos índios, nas dos negros”, nas da “gente miúda”, mal comparando como a de 1789, cujo movimento lhe faz tremer a pena de indignação. Na 1a edição de sua obra maior chamara Tiradentes de “insignificante”; na 2a edição melhora o tratamento dado a Tiradentes e escreve que “ele se adiantou a aceitar para si a responsabilidade desta nobre tentativa e as glórias do martírio que hoje lhe confere a posteridade” (sic).
Não devemos perder de vista que até o século XVII, com o absolutismo monárquico, o suplício, para lembrarmo-nos do filósofo Michel Foucault, quando tematiza “a ostentação dos suplícios” não desempenhava o papel de reparação moral; tinha, antes, o sentido de uma “cerimônia política”, o que lembra-nos certamente o lugar que ocupou o coliseu, do grego kolossaîon, pelo latim, colossaeu, anfiteatro da antiga Roma, objeto de sadismo como analisou brilhantemente o psicólogo Eric Fromm, mas que não trataremos agora. O delito como tal devia ser considerado como um desafio à soberania do monarca: ele perturbava a ordem de seu poder sobre os indivíduos e as coisas. “O suplício público, longo, terrificante, tinha exatamente a finalidade de reconstituir essa soberania; seu caráter espetacular servia para fazer participar o povo do reconhecimento dessa soberania”.
Mas como que numa figura de recalque, se por um lado F. A. de Varnhagen descreve a corajosa atitude de Joaquim José da Silva Xavier (1748-1792), o Tiradentes no suplício, por outro, continua a chamar de Piedosa aquela Rainha de “execrável memória”. De outra parte, em “Exaltação a Tiradentes”, os compositores Estanislau Silva, Mano Décio da Viola e Penteado, dizem assim homenageando o bravo alferes: “Joaquim José da Silva Xavier/Morreu a vinte e um de abril/Pela Independência do Brasil/Foi traído e não traiu jamais/A Inconfidência de Minas Gerais/Joaquim José da Silva Xavier/Era o nome Tiradentes/Foi sacrificado pela nossa liberdade/Este grande herói/Para sempre há de ser lembrado”. Nesta música, Tiradentes foi interpretado de Cauby Peixoto à la Elis Regina, já que ela foi uma mulher especial em voz e talento.
Ou seja, o que se pode extrair daí é que, a execução de Tiradentes também está inscrita na liturgia do poder que se materializava nas práticas penais do Ancién Regime. Nela a violência sobre o corpo do condenado se exerce depois da morte pela forca e atinge de forma desdobrada o corpo do réu com o corte da cabeça, o esquartejamento e a exposição, e atinge sua família, sua memória. Portanto, condenam o réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, alferes que foi da tropa paga da capitania de Minas, a que com baraço e pregão seja conduzida pelas ruas públicas ao lugar da forca, “e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada à Vila Rica, aonde em o lugar mais público dela será pregada em um poste alto até que o tempo a consuma; o seu corpo será dividido em quatro quartos e pregado em postes pelos caminhos de Minas, o sítio da Varginha e de Sebolas, aonde o réu teve as suas infames práticas”.
Contudo, ao contrário de seus companheiros, também ricos e letrados, Tiradentes, era um homem considerado “do povo”, ou mesmo poderíamos antecipar, etimologicamente falando, a idéia de “populismo”, contida na obra da escritora russa Alexandrovna Tvardoviskaia (1873), se se quer entender a representação social do “popular” como figura do conhecido. Isto porque notadamente seu saber era de experiência, prático, feito em sua vida de tropeiro, que jogou um papel fundamental para o transporte de mercadorias até o século XIX; de minerador, onde nos dias de hoje Carajás demonstra o submundo do trabalho na exploração do minério; de curador de doentes, de dentista afamado e de alferes. Mas, principalmente, para o que nos interessa, de conspirador, como ocorrera em notáveis anarquistas europeus, como o caso de Enrico Malatesta (Itália), em seus Escritos Revolucionários, Mikhail Bakunin (Rússia), Escritos contra Marx, Deus e o Estado e outros tantos reunidos recentemente na coletânea Os Anarquistas julgam Marx, como: Alexandre Skirda, Maurice Joyeux, Rudolf Rocker, Gastoon Leval, Daniel Guérin, Jean Barrué, Michel Ragon, Eric Vilain, para ficarmos nestes exemplos.
Por essas qualidades de humanista e por seu talento político de estadista, ultimamente revelado pelo chamado “revisionismo histórico”, foi ele que se fez “cabeça da conspiração”, impondo seu comando a tantos homens poderosos e letrados da elite política de Ouro Preto. Tiradentes era por todos proclamados como o principal, por seu fervor republicano; por sua confiança nos mazombos brasileiros para criar um país próspero e fazer dele uma grande nação; por sua temeridade para ações subversivas, contra a ordem monárquica vigente e todo o seu aparato de dominação, opressão e velhacaria. A fronda dos mazombos resgata a história esquecida ou escassamente conhecida do que constitui, talvez, o primeiro movimento social brasileiro de contestação ao sistema colonial português. Mutatis mutandis, em Pernambuco, já devastado por um quarto de século de guerra e dominação holandesa, as aspirações autonomistas, num percurso de mais de cinqüenta anos, culminariam na guerra dos Mascates e seriam esmagadas, como é sabido, na repressão desencadeada pela Corte de Lisboa.
Todos tinham certeza de que, unidos, poderiam por as riquezas do Brasil a serviço de seu próprio povo. Queriam criar aqui uma República como a que a América inglesa estava criando no Norte, com autonomia e liberdade, na busca de sua própria felicidade, como ficou bem representado no cinema, com a Guerra Civil americana, quando um tenente vai para o território ainda dominado pelos índios Sioux. Trata-se aqui de um épico intimista, profundamente ecológico, no sentido de Fritjof Capra, Ilya Prigogine, p.ex. e defensor da cultura indígena; mais do que isso porque toca na consciência de um Kevin Costner, nestes dias, através de um projeto pessoal tendo sua estréia como cineasta (cf. Dances With Wolves, EUA, 1990, 180 min.). Aspirações elementares estas, poder-se-ía dizer hoje, se elas não fossem tão atuais e incumpridas. Ou não é verdade que para muita gente é ousado demais pensar no desenvolvimento autônomo do Brasil, na sua reconstrução para servir ao seu próprio povo? Talvez nosso último guardião tenha sido o líder político liberal radical Leonel de Moura Brizola (1922-2004), porque foi “um influente político brasileiro, controverso, carismático, mobilizador”, como é descrito exemplarmente, mais uma vez pelo livro El Caudilllo (cf. Leite Filho, 2008; 544 páginas), lançado na vida pública por Getúlio Dornelles Vargas (1883-1954).
Os conspiradores mineiros inspiravam-se tanto no exemplo norte-americano de construção do pensamento liberal radical, como nas idéias libertárias que corriam o mundo e eclodiriam, simultaneamente, com a Revolução Francesa. Sua fé maior era no direito dos povos a viverem em liberdade, governando-se a si mesmos. Detestavam a tirania colonial portuguesa, como fora analisada pelo historiador Francisco Calazans Falcon no livro Despotismo Esclarecido, ou, em textos menores, como As Práticas do Reformismo Pombalino no Campo Jurídico, ou ainda, em Limites Coloniais do Absolutismo Esclarecido – a Época Pombalina no Brasil, e outros, tendo sua forma brutal e arbitrária de governar e sua ganância sem limites.
Nestas bases, afirma o antropólogo Darcy Ribeiro (1994), é “que se conjurou para planejar uma República brasileira, livre, soberana e próspera”. Ela teria uma bandeira branca, tendo no centro um rublo triângulo, evocativo da santíssima Trindade, e inscrito o lema vigiliano: Libertas quae sera tamen. O hino nacional seria o Canto Genetilíaco de Alvarenga Peixoto, poeta fluminense, que estudou no Colégio dos Jesuítas no Rio de Janeiro, assim como na Universidade de Coimbra, em Portugal, onde conheceu o poeta Basílio da Gama de quem se tornou um grande amigo. Exerceu o cargo de Juiz de Fora da Vila de Sintra em Portugal, bem como o de Senador pela cidade mineira de São João Del-Rei.
Ipso facto Tiradentes tinha certeza de que se podia criar no Brasil uma República melhor e mais próspera que a da América inglesa, porque fôramos mais bem dotados pela natureza, contando com os recursos minerais de imensa riqueza, além de termos cidades mais belas e mais cultas do que as norte-americanas. Destemido e ardente, andava sempre a dizer para quem quisesse ouvir: “Se todos quisermos poderemos fazer deste país uma grande nação” (sic). Também repetia com freqüência: “Ah! que fossem todos do meu ânimo”. O Brasil seria dos brasileiros. Irritado com os covardes, exclamava: “Vosmicê é daqueles que têm medo do bacalhau!” (sic) –, instrumento de tortura utilizado no período colonial. Tudo isso se lê nos Autos da devassa.
Varnhagen não foi só injusto, frio ou obscuro, além de preconceituoso, sem generosidade, sem compreensão para com todos os rebeldes, os inconformados, os perseguidos, especialmente os das “classes mais modestas”, na falta de melhor expressão, como também o fora, na literatura, o brioso escritor e fundador da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis, que no dia 22 de maio de 1892, no jornal A Semana, escreve com ironia sobre o novo herói da República, Tiradentes, que ganhou proeminência só a partir de 1890:
Esse Tiradentes se não tomar cuidado em si acaba inimigo público. Pessoa cujo nome ignoro escreveu essa semana algumas linhas a fim de retificar a opinião sobre o grande mártir da inconfidência (...). Não será possível imaginar que, se não fosse a indiscrição de Tiradentes, que causou o seu suplício e o dos outros, teria realidade o projeto? Daqui a espião da polícia é um passo (...). Mas ainda restará alguma coisa ao alferes; pode-se-lhe expedir a patente de capitão honorário (...). Antes isso que nada (...). O certo, porém, é que o culto a Tiradentes não se iniciou nessa época. Segundo Carvalho, um dos marcos do processo data de 1872, quando foi publicada a obra de Joaquim Norberto de Souza e Silva – História da conjuração mineira -, que teria gerado grande controvérsia. No entanto, foi só após a República que se intensificou o culto cívico a Tiradentes, e apenas em 1890 a personagem virava feriado nacional (...). Além disso, foi também na década de 90 que a figura de Tiradentes, até então pouco retratada, passou a se associar à imagem de Cristo. Décio Vilares distribuiu para o desfile de 1890 uma litografia em que aparecia o busto de Tiradentes, cuja placidez era a própria representação de Jesus Cristo. Em 1892, o mesmo artista voltou a retratar o inconfidente, dessa feita em uma pintura a óleo. Outro artista, ainda – Aurélio de Figueiredo -, terminaria uma nova tela de título significativo: O martírio de Tiradentes. Isso sem falar da representação realista de Pedro Américo, de 1893, que mostra Tiradentes esquartejado sobre o cadafalso” (cf. Jornal A Semana: Rio de Janeiro, 1890).

[i] Sociólogo, Cientista Político. Professor da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (Uece).